07/10/2020
Em 30 de setembro, o presidente Bolsonaro publicou o decreto nº. 10.502, instituindo a nova Política de Educação Especial, que estimula estudantes com deficiência, transtornos do desenvolvimento e altas habilidades a frequentarem salas e escolas especiais. Embora a União não possa obrigar estados e municípios a aderirem ao modelo, o governo prevê recursos financeiros e apoio técnico às redes que o implementarem.
O governo argumenta que, com salas e escolas especiais, os estudantes podem ter mais assistência, de acordo com suas necessidades. Contudo, especialistas apontam um retrocesso para os direitos das pessoas com deficiência, uma vez que ele remonta às políticas dos anos 90 e desconsidera todos os documentos legais que preveem a educação inclusiva, como a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a Lei Brasileira de Inclusão e a própria Constituição Federal.
“Lutamos durante muitos anos para mudar esse modelo que separa os estudantes com deficiência dos demais, e que cria uma cultura de que é normal segregar e excluir as pessoas com deficiência. Hoje convivemos com um modelo de inclusão que precisa de melhorias, mas que já conta com 90% das crianças e adolescentes matriculadas na escola comum.”, afirma Luiza Correa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes.
A especialista destaca que em ambientes com rica diversidade, todos os estudantes, com ou sem deficiência, aprendem melhor, socialmente e pedagogicamente, tendo oportunidade de conviver com a singularidade humana. “Inclusão nas escolas regulares é o que prepara para a vida em sociedade”, defende Luiza.
Outro ponto de preocupação em relação ao decreto diz respeito à possibilidade das famílias escolherem em qual escola (especial ou comum) os filhos vão estudar, podendo recorrer a um comitê que dirá qual é a melhor alternativa para aquele estudante. “A questão é que é direito da criança e do adolescente estudar na escola comum”, pontua a especialista do Instituto Rodrigo Mendes.
Apesar dessa nova política, as escolas regulares seguem não podendo negar matrícula dos estudantes com deficiência ou cobrar uma taxa extra, por se tratar de um direito constitucional, reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2016.
Lucas Bueno estudou a vida inteira em escolas regulares, à exceção de um período quando pediu para sua mãe matriculá-lo em uma escola especial, porque queria conhecer o ambiente e saber como seria a convivência com outras pessoas com deficiência. A experiência, no entanto, durou apenas duas semanas.
“Não gostei e voltei para a escola pública comum, onde tínhamos várias disciplinas e estudos diferentes e eu conseguia viver mais a vida, ter mais liberdade, coisas que não eu tive na escola especial”, explica Lucas, que concluiu o Ensino Médio em 2018, e hoje, aos 21 anos, trabalha no Palácio do Governo e é autodefensor e membro do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência (CMPD), órgão de representação das pessoas com deficiência perante a Prefeitura de São Paulo.
Essa escola especial em que Lucas estudou por um breve período era da antiga Apae de São Paulo, hoje Instituto Jô Clemente, e foi fechada depois de 2008, em consonância com os valores presentes na Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, aprovada naquele ano, e outros documentos legais.
Roseli Olher, supervisora do Atendimento Educacional Especializado (AEE) do Instituto Jô Clemente, acompanhou, durante três anos, todo o processo de fechamento da escola especial e ingresso desses alunos em escolas comuns, assim como a adaptação das crianças e adolescentes nesse novo ambiente. Sua função era orientar as escolas regulares e oferecer qualquer apoio que os estudantes necessitassem.
“O convívio com pessoas sem deficiência melhorou o desenvolvimento dos estudantes nos aspectos cognitivos, sociais, de autonomia e comunicação. Eles passaram a escolher e dizer o que eles querem e gostam ou não, a se sentirem capazes e no direito de estarem ali, e viram que todo mundo é diferente, de alguma maneira. E isso tudo também melhorou a autoestima deles, porque passaram a ser valorizados e respeitados”, relata Roseli.
Ao mesmo tempo, a especialista acompanhou um segundo grupo de estudantes, uma minoria de famílias que decidiu matricular seus filhos em outras instituições especializadas, por receio de que os alunos não conseguiriam acompanhar o ritmo das aulas. “A diferença foi nítida. Eles continuaram inseguros e dependentes dos profissionais.”
Há 12 anos, quando os estudantes com deficiência começaram a frequentar mais as escolas comuns em decorrência da Política de Educação Inclusiva, a convivência inicial não foi tranquila. Houve muito preconceito, discriminação e bullying, como ainda acontece em algumas escolas. Mas também houve muito avanço. “O respeito e a convivência se tornaram naturais. Mas com essa nova política, todas essas conquistas podem ir por água abaixo”, diz Roseli.
*Texto publicado originalmente no Centro de Referências em Educação Integral