14/03/2023

Educação democrática, antirracista e inclusiva impulsionam debates na V CONANE

Desde sua primeira edição, em 2013, a CONANE (Conferência Nacional de Alternativas para uma outra Educação) vem reunindo educadores e outros atores de diferentes setores da sociedade para co-construir uma nova forma de se fazer educação. Se fossemos resumir as premissas que habitaram sua 5ª edição: uma educação democrática, antirracista, inclusiva e voltada para o fortalecimento das juventudes.

Ocorrida de 10 a 12 de março, na Universidade de Brasília (DF), sob o tema gerador “Educação, Pobreza e Antirracismo”, a V CONANE, da qual participaram 400 pessoas do país todo, foi significativa por não só marcar o retorno presencial do evento após dois anos de hiato, mas também por realizar-se em um momento estratégico para a discussão e reinvindicação de importantes políticas públicas de educação que foram sumariamente desmanteladas com os últimos governos federais. Logo, nada mais lógico que sua abertura ocorresse com o painel “O papel da educação no fortalecimento da democracia”.

À mesa, Rosa Margarida de Carvalho Rocha, especialista em Estudos Africanos e Afro-brasileiros e mestre em Educação, resumiu seu raciocínio sobre educação democrática com a seguinte máxima: não há democracia sem antirracismo. Nesta perspectiva, a educadora falou sobre a imprescindibilidade de combater o racismo estrutural e da implementação de um currículo que represente a pluralidade brasileira, isto é, os sujeitos concretos que habitam a escola pública Brasil afora para a efetivação de uma educação democrática. “O grande problema que temos nas Secretarias Municipais de Educação é o fato de muitos gestores não aceitarem o tema étnico-racial como uma questão que deve ser tratada curricularmente. Precisamos exigir uma ação contundente das instituições responsáveis de fazer valer a Lei 10.639/03”, apontou.

Rosa trouxe ainda em sua explanação a ideia de necroeducação e como ela se encontra impregnada na sociedade brasileira. “Se eu misturo racismo estrutural e institucional, observo que a escola reproduz a necropolítca do estado, no sentido de escolher quem são os descartáveis, aqueles que podem morrer e aqueles que podem viver. Então, a necroeducação é aquela em que a escola diz quem são aqueles que podem ou não ter sucesso escolar. A necroeducação é a morte do sonho das famílias negras de ascenderem socialmente através da educação”, denunciou.

Painel “O papel da educação no fortalecimento da democracia”

Também convidado do painel, Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (SP), abordou, sobretudo, a reforma do Ensino Médio e os interesses por trás de sua idealização e implementação. Feita por meio da Medida Provisória 746/2016 e sancionada em fevereiro de 2017, após um processo envolto em polêmicas, a reforma curricular da etapa vem sendo implementada desde 2021 apesar das críticas de grande parte da comunidade educativa.

Para Cara, além de ser fruto de um processo ilegítimo, a reforma estabeleceu uma política educacional que coloca em prática objetivos escusos. “[A reforma objetiva] conter o gasto público com educação que, principalmente no primeiro governo Dilma, cresceu vertiginosamente. Em relação ao investimento que é feito, [objetiva também] controlar a maneira como se dá esse investimento, o chamado ‘gerencialismo’, isto é, a falácia de que o problema da educação não é a falta recurso, mas seu gerenciamento.” Por fim, o educador apontou como um terceiro interesse da política a privatização da educação, no sentido de ampliar a oferta de matrículas no sistema privado com o subsídio do governo. “Há ainda um quarto objetivo que não é central: a disputa neoliberal na escola, a ideia do indivíduo neoliberal que é aquele que acredita que é empreendedor de si mesmo”.

A vez e voz dos jovens

Ainda na sexta-feira, o painel “De mãos dadas a esperançar: como articular as lutas das juventudes às lutas das educadoras e educadores?” colocou jovens de diferentes origens para trocar seus entendimentos sobre educação emancipadora e transformadora. Representando o Pará, Henrique Ferreira falou sobre sua experiência enquanto estudante morador de uma comunidade ribeirinha com o ensino modular. Falta de professores e transporte escolar, fragmentação e falta de representatividade curricular, entre outros pontos foram decisivos para que a grande maioria de seus colegas decidisse evadir do Ensino Médio, contou. “Comecei com uma turma de 45 alunos e só 5 se formaram”. Henrique ainda apontou como problemática a persistência de estereótipos sobre a vida na Amazônia pela grande mídia. “Viver lá é muito complicado. A gente não escolhe ser ativista, a gente não escolheria colocar nossa vida em risco. A gente faz por necessidade, porque a gente quer mudança”, compartilhou.

De Santarém (PA), Clara Gentil endossou as questões trazidas pelo colega. Em sua trajetória, ela apontou como grande diferencial a oportunidade que teve de frequentar projetos educativos inovadores como o Escola D’água, vinculado ao Instituto Mureru Eco Amazônia,  e mais recentemente, o projeto Plantar.  “No final de janeiro, fui chamada para entrar no projeto Plantar e encontrei professores dispostos a mudar o jeito que ensinavam seus alunos, dialogando sobre como fazer as chamadas ‘salas florestas’. É disso que precisamos: de professores que transformem a vida dos alunos.”

Pois como lembrou Rebeca Sousa, de Aracaju (SE), não há luta da juventude sem a luta dos educadores. Hoje estudante de Ciências Sociais, a jovem falou sobre a necessidade dessa contaminação mútua. “Todo mundo tem uma história de um professor que mudou a sua vida e todo professor tem a história de um aluno que mudou a sua. É assim que a roda gira. Sempre me senti uma menina não vista, de um estado pequeno, de uma cidade pequena. E então uma professora me viu. Ela viu uma oportunidade que achou minha cara e eu fui”. Rebeca se refere à liderança que desempenha no projeto Girl Up, que luta pela igualdade de gênero e contra a pobreza menstrual. “Quando eu penso em educação, eu penso em chama, em transformação. E os educadores servem para nos guiar nesse processo, para nos dar um norte”, acrescentou.

Painel “De mãos dadas a esperançar: como articular as lutas das juventudes às lutas das educadoras e educadores?”

Cientista social recém-formado, Pedro Elgaly, do Rio de Janeiro (RJ), falou sobre o entrelaçamento de dois temas que sempre estiveram presentes em sua vida: educação e desigualdade social. Inspirado pelo trabalho da mãe como dentista em um centro correcional de jovens e pelo professor de Sociologia do Ensino Médio, Pedro decidiu que se dedicaria à luta contra a desigualdade. “Saí do Rio e fui para a Baixada Fluminense fundar um cursinho pré-vestibular comunitário, o Emily e Rebecca, que recebeu esse nome em homenagem a duas meninas que foram assinadas a caminho da escola, o que infelizmente acontece com frequência na polícia que mais mata e morre no planeta”.

Na sua prática, Pedro observa que, ao mesmo tempo em que a juventude quer a oportunidade de aprender, não é raro ver muitos jovens evadirem do cursinho devido à falta de esperança. “É uma realidade subestimada porque muitas pessoas sequer conseguem se imaginar chegando lá [nas universidades]. Por isso, é fundamental que o educador mantenha a autoestima intelectual dos alunos elevada em um patamar que eles se sintam dignos e capazes de percorrer o sonho deles. É importante que os professores não só formem esses jovens de forma idealista, mas também tecnicamente para travar suas lutas”, acrescentou.

Coerente com seu objetivo maior de garantir encontros, trocas de aprendizagem e articulações, as tardes foram dedicadas a rodas de conversa temáticas e apresentações de 48 projetos e 33 oficinas. Na sexta, aconteceram, por exemplo, apresentações como do projeto Escolas D’Água, de Santarém (PA), da Escola Pluricultural Odé Kayodé, da cidade de Goiás (GO), a Escola dos Sonhos/Escola Nossa Senhora do Carmo, de Bananeiras (PB), e a gestão da educação de Almirante Tamandaré (PR), liderada por seu secretário Julcie Parreira. Na sequência, Parreira participou de uma roda de conversa sobre a rede de proteção escola-comunidade com Braz Nogueira.

Rodas de experiências com projetos e escolas que participam do Escolas2030

Inclusão e antirracismo

Conferência sobre “Educação Antirracista”

O sábado, 11/03, foi aberto com a conferência “Inclusão e Anticapacitismo nas Escolas”. A deputada estadual Andréa Werner falou sobre capacitismo, isto é, sobre o preconceito contra a pessoa com deficiência e como ele se manifesta no processo de escolarização. “Muitas vezes, a barreira está no ambiente e não na pessoa. Isso serve também para a educação. Se tirarmos as barreiras, adaptarmos conteúdos, damos acesso aos alunos com deficiência”, apontou.

Também presente no painel, a ativista e educadora Jessica Borges acrescentou sobre o debate: “As pessoas acham que deficiência é ausência de saúde, como se você tivesse que ser curado de alguma coisa. Como se as pessoas acordassem todos os dias para superar a própria deficiência. A mesma sociedade que nos impõe barreiras por termos deficiência, é a que vai nos dar uma medalha por isso”, refletiu Jessica, que é autista, sobre as nuances do capacitismo.

Em seguida, a conferência sobre “Educação Antirracista”, trouxe experiências concretas de escolas que estão desenvolvendo atividades e implementando currículos decoloniais. Sobre esta perspectiva, Ildete Batista do Carmo, autora de “Identidade étnico-racial: infância, escola, família e subjetividade”, colocou:  “É preciso recentralizar a criança negra no espaço escolar. O trabalho para alcançá-las precisa partir da presença e das experiências das crianças negras na escola. Trazer histórias pretas para crianças pretas e nesse processo, que tem a nossa diversidade, elas podem se reconhecer. Não é um trabalho para novembro, é para agora.”

Por sua vez, Catarina de Almeida Santos, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás, trouxe a perspectiva da educação antirracista enquanto política pública de educação. “A escola precisa garantir aquilo que o estado não está garantindo. Quando estamos falando de educação antirracista, não basta que não pratiquemos as ações de racismo, é preciso combate-lo. No Brasil, ser diverso é ser excluído, inclusive, com a morte. Não dá para falar de outro Brasil sem falar de um processo formativo que considere o antirracismo”.

Oficina Escolas2030: pesquisa-ação para uma outra educação

Pela tarde de sábado, os participantes do evento tiveram, mais uma vez, a chance de se aprofundar em temas variados por meio de rodas de conversa e oficinas. Uma delas foi a “Escolas2030: a pesquisa-ação como estratégia de construção e sistematização de uma outra educação”, ministrada pelos pesquisadores do programa Douglas Ladislau dos Santos e Fernando Tavares, e pela coordenadora-geral Helena Singer.

De início, a oficina explicou as premissas e objetivos do programa global que, além do Brasil, acontece em outros nove países:  apoiar as organizações educativas inovadoras para que possam melhor projetar, mensurar e apresentar novas soluções para alcançar o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 4 até 2030 de forma a subverter a lógica hoje existente ao colocar estes atores do Sul Global para pautar os modelos de pesquisa e indicadores de qualidade da educação.

Oficina “Escolas2030: a pesquisa-ação como estratégia de construção e sistematização de uma outra educação”

No Brasil, cinco aprendizagens norteiam esse processo de pesquisa-ação: empatia, colaboração, criatividade, protagonismo e autoconhecimento. “A ideia é que as escolas acompanhem essas cinco aprendizagens e a gente vá produzindo sistematização e reflexão para a própria escola e para recomendações públicas para o país. Já produzimos duas recomendações. A primeira é que deveria ser política pública a organização poder refletir sobre sua própria prática por meio da pesquisa-ação. A segunda é que as secretarias investiguem suas próprias redes, o que suas escolas já fazem, quais aprendizagens valorizam e como elas as avaliam para inverter a lógica do avaliador externo” compartilhou Helena.

Para concretizar esses anseios, Fernando apresentou alguns exemplos de como participantes do programa vêm investigando essas aprendizagens. Na prática, os grupos envolvidos na pesquisa-ação identificam algo no cotidiano escolar que acham importante e investigam esse tema. “Não é que o Escolas2030 vai dizer o que é empatia para a escola. Na Escola Baniwa Eeno Hiepole, por exemplo, eles escolheram trabalhar autoconhecimento, porque queriam melhorar a vida na aldeia. Mas tudo que eles falavam sobre esse conceito tinha a ver com o coletivo. Perguntei: mas não era autoconhecimento? E entendi que para os baniwa não existe individualismo, então para eles autoconhecimento era conhecer a comunidade, o coletivo, os bichos, as plantas, etc.”, contou.

Com o programa ganhando força, a rede Escolas2030 vem se ampliando e pretende chegar a 100 organizações educativas inovadoras e abranger todos os territórios do Brasil. “Temos cerca de 80 organizações participantes e estamos na fase final de ingresso. A partir de abril, iniciaremos uma atividade formativa que consiste em criar uma comunidade de práticas com essas organizações educativas e secretarias parceiras. Vamos envolvê-las nesse processo por meio de um curso de extensão ministrado pela Faculdade de Educação da USP e abordar como fazer pesquisa-ação”, dividiu Douglas.

Na sequência, os participantes da CONANE puderam conhecer um pouco mais sobre como a Escola Municipal Antonio Coelho Ramalho, de Ibiúna (SP), está realizando sua pesquisa-ação e a transformação de sua prática na roda de conversa “A relação de confiança entre a escola e a família”.

Localizada na periferia da cidade e marginalizada, inclusive, pelos educadores que evitavam trabalhar lá, a organização vem passando por um processo de reinvenção desde 2016, por meio do projeto “Desenvolvendo a aprendizagem, o protagonismo e a colaboração”, que, entre outros pontos, rompe com a lógica da seriação ao colocar os alunos para trabalhar em grupos de idades diversas. Esse processo, no entanto, só foi possível porque envolveu diálogo e respaldo das famílias. “Falei com os pais sobre a nova organização das crianças, que não íamos mais ter lição na lousa, de casa, que íamos propor coisas diferentes, como sair mais com as crianças da escola. E eles toparam”, contou a diretora Mila Zeiger Pedroso.

 

 

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