06/10/2020
Por José Pacheco
Campinas, 16 de setembro de 2040
Pedistes que vos contasse mais um pouco daquilo que o amigo Rubem viu e sentiu, na Ponte. Então, aqui vai.
“À esquerda da porta de entrada havia frases escritas com letras grandes, afixadas na parede. A menina explicou: “Aprendemos a ler lendo frases inteiras”.
As frases que se encontravam escritas na parede da Escola da Ponte eram frases propostas pelas próprias crianças, frases que diziam o que elas estavam vivendo. Aprendiam, assim, que a escrita serve para dizer a vida que cada um vive. Pensei que é assim que as crianças aprendem a falar. Elas aprendem palavras inteiras, pois somente palavras inteiras fazem sentido. Elas não aprendem os sons para depois juntar os sons em palavras.
“Mas é importante saber as letras na ordem certa”, continuou, “porque é assim que se aprende a ordem alfabética, para usar os dicionários”. Ela falava assim mesmo, não é invenção minha”.
Não era mesmo “invenção”. Todos aprendiam a ler, cada qual a seu modo e no seu ritmo, explorando diferentes estilos de inteligência e diversas metodologias. Chegada à Ponte, contando cinco aninhos de vida, qualquer criança já sabia ler. Lia em português: Coca Cola. Em inglês: Mc Donalds. E até em japonês: Toyota. Mas, na escola da aula, todo esse repertório linguístico era desprezado. As crianças deixavam de ler “Coca Cola”, para papaguear “ca, ce, ci, co, cu, la, le, li, lo, lu”.
O “método” era igual para todos, quase sempre o “fônico”. O ritmo individual de aprendizagem era ignorado. O que prevalecia era aquele que a professora impunha. Daí que, ao cabo de alguns meses, a mestra recomendasse a ida do João e da Joana para “aulas de reforço”, porque “tinham dificuldades de aprendizagem e não conseguiam acompanhar o ritmo da turma”. Sabeis o que era o “ritmo da turma”? Nem eu!
Quase sempre, do “reforço”, o João e a Joana passavam ao “ensino de adultos” e, não raras vezes, se quedavam analfabetos. Mas, voltemos ao Rubem e à aprendizagem da cidadania:
“Havia um grupo de alunos e professoras reunido à volta de uma mesa. “Estão a preparar a assembleia de hoje. Temos uma assembleia que se reúne semanalmente para tratar dos problemas da escola e para sugerir soluções”. O normal é que os olhos vejam mais as coisas ruins e que a boca tenha mais prazer em falar sobre elas. Mas lá, na Escola da Ponte, as crianças são convidadas a ver o bom, o bonito, o generoso, e a falar sobre eles. Ando um pouco mais e encontro uma menina com síndrome de Down trabalhando com outras, numa mesinha. Ela trabalha de forma concentrada. Sua presença é uma presença igual à de todas as demais crianças, ela aprende que ela tem um lugar importante na vida.
No Brasil, colaborei com a Fundação Síndrome de Down, instituição a que o Rubem estava ligado por fortes laços de afetividade. Partilhei a inclusão da Ponte dos anos oitenta. Acolhíamos o que outras escolas rejeitavam.
Quando acolhemos o André, jovem com trissomia 21, perguntei-lhe o que ele queira ser. Não “quando fosse grande”, porque perguntar isso a uma criança era xingá-la (criança é! – não vai ser). Respondeu:
“Posso dizer o que eu quero ser?”
Isso acontecia sempre que, no chão das escolas, eu ensaiava perguntas iniciadoras de projetos, porque, a educação familiar, social e escolar desse tempo proibia a pergunta, matava a curiosidade.
“Quero ser goleiro” – disse o André.
O projeto de vida de um goleiro recomeçou. E, em 2018, quando Portugal ganhou o campeonato europeu de futebol de salão, o goleiro da seleção nacional era… o André.