10/01/2022

A pandemia se aliara a uma democracia frágil

Por José Pacheco

Cacela Velha, 17 de dezembro de 2041

No dezembro de 2021, que Natal teriam milhões de brasileiros, que sobreviviam abaixo do limiar da pobreza? No rico Distrito Federal, uma creche comunitária corria risco de fechar as portas, por falta de doações. Sobrevivia, unicamente, de doações da comunidade e cuidava de crianças em situação de risco social.

Num ambiente carinhoso, sessenta crianças ali passavam os seus dias. Ao mesmo tempo que a creche atendia crianças em vulnerabilidade social, auxiliava as famílias, entregando-lhes alimento. A crise econômica provocada pela pandemia comprometera a renda salarial de muitos milhões de brasileiros. Perderam o emprego e a disparada inflacionária dificultava a compra de alimentos básicos.

Muitas pessoas da comunidade, que contribuíam para a manutenção da creche viram-se forçadas a suspender as doações. Mas, embora a instituição tivesse fechado as portas, continuou a oferecer refeições a pessoas da comunidade, que mendigavam um prato de comida. Em 2021, a creche voltou a funcionar presencialmente, oferecendo cinco refeições ao dia: café da manhã, lanchinho com frutas, almoço, lanche da tarde e jantar para as crianças, que voltavam para casa com uma sacolinha de pão, para suprir necessidades básicas.

Escutei protagonistas do drama:

“Um dia, um assistente social veio com a mãe de gêmeos e uma bebê recém-nascida pedindo ajuda e, mesmo sem vagas abertas, nós recebemos os gêmeos e arranjamos um carrinho de gêmeos mesmo, e ela coloca os dois de um lado e a bebê do outro”.

Mãe de cinco filhos, Luciene trabalhava como vendedora nas ruas, para completar o Bolsa-Família, numa luta diária para pagar as contas:

“Para pagar o aluguel, é matando um leão por mês. Para a comida, nós contamos com as doações das igrejas, Casas de Passagem, CREAS, e eu continuo vendendo minhas balinhas, paçocas, picolé, de tudo um pouco.”

Desmaios por fome tornavam-se rotina nas escolas:

“Essa aluna chegou bem atrasada. Ela bateu na porta da sala de aula, eu abri e notei que ela não estava bem, mas não consegui entender o porquê. Passei álcool na mão dela e senti a mão muito gelada, num dia em que não estava frio para justificar.

“Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei. Perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não.

Fui pegar algo para ela, na minha mochila — porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou”. 

Era um povo sofrido aquele com quem convivia, nos idos de vinte. A pandemia se aliara uma democracia frágil. E um governo (democraticamente eleito) manifestava-se impotente para deter o flagelo da fome.

Na Brasília do início dos anos vinte, a incompetência cohabitava com a corrupção intelectual e moral. Passaria mais de uma década, até chegarmos a um nível de maturidade democrática, que nos permitiria prevenir e evitar dramáticas situações.

Saramago, que exerceu o ofício de escritor com a consciência de um cidadão e a visão ampla de um verdadeiro intelectual, deste modo apontava as raízes do drama:

“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”. 

2022 marcaria o princípio do fim de um pesadelo. Nesse ano, se comemorava o centenário do nascimento de Darcy Ribeiro. Em próximas cartas, tentarei descrever-vos acontecimentos desse ano extraordinário.

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