05/07/2022
Por Germán Doin, diretor do filme “A Educação Proibida” e coordenador do espaço educacional “Projeto C”*
Semana passada passei 4 dias na cidade brasileira de Caiobá (Matinhos, Paraná) onde aconteceu a 5º CONANE Caiçara (Conferência de Alternativas para uma Nova Educação). Um evento regional que reúne entusiastas da transformação educacional no Brasil, organizado pelo Movimento de Alternativas para uma Nova Educação.
Matinhos é uma zona turística com vários quilômetros de praia que explode de gente no verão e cujos prédios são esvaziados fora de época: só restam os habitantes locais e a vida universitária. Lá, fica uma das muitas filiais locais da UFPR, a Universidade Federal do Paraná, uma das maiores universidades públicas do Brasil, que há muitos anos tem uma política de ter filiais municipais para evitar que os alunos saiam de suas cidades e vilas.
Valdo Cavallet, um dos mais fortes promotores deste campus universitário, vive e trabalha nesta cidade. Engenheiro agrônomo de profissão, tem um histórico de forte militância política na história do Brasil, mas também de ativismo universitário, hoje dedicado a promover e sustentar movimentos de educação alternativa. Valdo é um defensor da educação pública, mas convencido de que ela deve ser completamente transformada.
Ao lado de um grande time de pessoas, Valdo faz parte do Movimento Alternativas para uma Nova Educação, uma das entidades responsáveis pelo CONANE, que desde 2013 reúne referências, experiências, educadores, projetos e formuladores de políticas públicas.
A CONANE foi um impulso inicial de um grupo de educadores de diversas origens que deu espaço para a redação e desenvolvimento do Terceiro Manifesto pela Educação em 2013. Desde então, o movimento cresceu. Hoje, além da Conferência Nacional bianual, diferentes regiões do Brasil organizam suas CONANEs regionais. Esta semana aconteceu a organizada pela região caiçara, integrando vários estados do Brasil. Entre todos os entes queridos das redes e movimentos alternativos de educação estava Sonia Goulart, um dos pilares da organização da CONANE. Desde o primeiro, dia Sonia vem gerenciando, promovendo escolas transformadoras e aproximando uma ética do cuidado e da sensibilidade, mas sempre com força e clareza política. Desde 2015 reunimo-nos regularmente em diferentes espaços onde tecemos redes. A Sônia já é uma grande amiga.
O evento é sobre alternativas, por alternativas e feito por alternativas. Às vezes uma coisa mais que outra, mas as vozes estão todas lá. Há momentos de rodadas de discussão e troca que são sintetizados em um manifesto final. Há também atividades vivenciais e oficinas para adultos e crianças, onde se saboreia um pouco de educação alternativa. Há espaços que remetem ao acadêmico, com conferências. Embora chamar de conferência seja a única coisa que é acadêmica, porque os palestrantes são ativistas da educação, militantes populares, representantes dos povos indígenas ou, no meu caso, comunicadores independentes transformados em educadores.
Em meio a essas apresentações há momentos culturais em abundância. Murais pintados ao vivo por artistas locais, peças de teatro infantil com a visita de crianças do município, grupos de estudantes de capoeira, cantores e compositores populares dedicando suas canções a cada um dos convidados, conjuntos musicais especializados em gêneros da cultura popular e identidade regional, intervenções e até mesmo uma peça de teatro conceitual histórica sobre a liberdade realizada por estudantes universitários. Nada é desperdiçado.
Mais cedo ou mais tarde, descobre-se que a forma como a equipe da CONANE consegue isso é com uma grande base de trabalho voluntário e comunitário. Muito disso se deve à ANE (Alternativas para uma Nova Educação), nome dado ao programa de pós-graduação organizado por Valdo na universidade e onde dezenas de egressos se matriculam todos os anos para se especializar em educação alternativa em uma universidade pública gratuita. Este ano a ANE3, terceira turma do curso de pós-graduação, conclui seus estudos. Os dois primeiros foram presenciais com profissionais locais, enquanto este foi o primeiro virtual, que permitiu a inscrição de pessoas de todo o Brasil e de outros países.
Minha palestra foi no primeiro dia e eu compartilhei várias ideias em detalhes. Nesse caso me dediquei aos perfis que fazem um educador integral, mas não vou me estender aqui porque isso fica para outra publicação. Entre o público estavam muitos dos participantes da pós-graduação, organizadores da CONANE, educadores locais, estudantes, líderes de projetos de todo o país. Entre eles estava Mariana, uma jovem de Belo Horizonte que deixou sua formação em marketing há 2 anos para se dedicar à promoção de educação alternativa. Eu a conheço porque graças à ANE, Mariana se conectou comigo em sua viagem a Buenos Aires, visitou o Projeto C e participou ativamente como voluntária por um mês. Isso faz parte da magia da rede internacional. Assim que terminei minha palestra, chegou Paula Fernández, que fez sua pós-graduação e veio de Santa Fé para o evento. Paula é educadora da Escola La Cecilia e, graças à modalidade virtual, pôde fazer parte da ANE3.
Assim como Paula, educadores de todo o Brasil participam da ANE, ora pessoas que estão iniciando suas iniciativas e outras já com um caminho muito claro de transformação educacional. É o caso de Mila, que coordena uma escola municipal em São Paulo, onde ousou eliminar as aulas por matéria, provas, notas e sequência de aprendizado. A escola de Mila, como muitas no Brasil, é fortemente inspirada no trabalho de José Pacheco e da Escola Da Ponte, onde as crianças têm voz para decidir o que querem aprender e os currículos são transformados em roteiros de aprendizagem que são construídos de forma colaborativa.
Uma das maravilhas da CONANE é seu visual integrador e eclético; há convidados de todos os perfis. Graças a isso tive a oportunidade de conhecer muitas pessoas interessantes. Um dos palestrantes convidados foi o grande Braz Rodrigues Nogueira. Conheço-o há anos através das redes, documentários educativos, livros e entrevistas, mas nunca lhe tinha apertado a mão ou tido o prazer de ouvi-lo em público. Há mais de 25 anos, Braz assumiu a gestão da Escola Campo Salles na segunda maior favela de São Paulo. Desde então, não parou de implementar transformações baseadas na comunidade. Hoje Campo Salles é o centro de uma cidade educadora que trabalha com educação popular, pedagogias alternativas e democráticas. No segundo dia já estávamos discutindo desafios na gestão educacional nas escolas, bem como estratégias de transformação pedagógica em larga escala.
Entre conferência e conferência, entre rondas e workshops, Valdo pega no microfone e repete o lema do encontro como um grito de guerra: “Estamos de volta”. Ele diz isso se referindo aos anos da pandemia, mas também à posição política progressista da CONANE de rejeitar o governo de extrema-direita do atual presidente, anunciando que as coisas mudarão em breve. Valdo apresenta detalhadamente cada atividade, oficina e palestrante, trazendo anedotas que enchem de cor o cenário universitário em que a CONANE acontece.
Uma dessas cores foi fornecida por Alex Cardoso, cujo sobrenome pensei desde o início que era Catador, mas logo entendi que catador significa lixeiro em espanhol. Alex é um catador de lixo popular, conhecido na Argentina como reciclador urbano, cartoneros e outros nomes. Alex insiste em se definir como Catador, por causa de sua origem e para se diferenciar da tendência do mercado de chamá-los de recicladores. Ele vem de uma família de provadores de várias gerações. Conversando durante o almoço descubro que já o tinha visto em um documentário dos anos 90, “La Isla de las Flores”, onde aparece sua família. Esse documentário deu início a uma cultura de denúncia da sociedade consumidora e do lixo que hoje faz parte da política de Alex, que se soma também à defesa do trabalho cooperativo, dos direitos dos lixeiros e, no caso desta conferência: o direito dos setores populares à educação de qualidade. Alex denuncia a educação hegemônica e reivindica uma educação alternativa e popular. Ele o faz a partir do lugar de um provador que nos últimos 7 anos de sua vida voltou a estudar para concluir o ensino fundamental e receber o diploma de segundo grau, graduação em Antropologia e, atualmente, mestrado.
Outra pessoa que se destacou foi Jaqueline Moll, que dizem ser uma das favoritas para o cargo de ministra da Educação caso Lula volte a ser presidente. Jaqueline foi responsável pelo Programa Mais Educação, talvez uma das políticas públicas alternativas de maior escala na América Latina. Era uma política pública nacional que concedia verbas diretamente do Estado às escolas para organizar programas de extensão fora do horário escolar, priorizando oficinas de arte, esportes, desenvolvimento cultural, experimentação científica, ação comunitária. É um programa que pode ser visto em diferentes partes da América Latina sob vários nomes, mas não há dúvidas de que a versão brasileira é a mais popular de todas. Jaqueline, além de educadora com larga experiência em políticas públicas, poderia ser (espero) a primeira mulher e ministra da educação da história do Brasil. Mas, além disso, é uma fervorosa defensora da herança pedagógica latino-americana. Em sua conferência recuperou nomes de referências do Brasil, da América Latina e incluiu pedagogos históricos alternativos cujos nomes se repetem diariamente neste site. Para mim, isso já representa esperança.
Esses dias devo ter contado mais de 15 pessoas que vieram expressar sua gratidão pela “Educação Proibida”, me contando quando a viram pela primeira vez e o que isso significou em suas vidas. Menciono isso porque também fiz esse papel de fã quando me aproximei do Braz, mas também quando conheci a Ana Julia pessoalmente. Em 2016, em plena crise política no Brasil – que alguns de nós preferem chamar de golpe -, o sistema público de ensino foi um dos principais alvos de ataque. Naquela época, a politização dos alunos era discutida como algo negativo; houve dezenas de ocupações de escolas secundárias e um jovem adolescente teve a oportunidade de falar diante de uma câmara dos deputados denunciando o absurdo do sistema educacional e o esvaziamento da educação. Essa era Ana Júlia Ribeiro. Nessa altura, vi a intervenção dele e chorei de emoção. Tal foi a inspiração que em 2017 na CONANE em Brasília incluímos fragmentos de sua intervenção em um vídeo que pretendia refletir a situação política e educacional na América Latina. Na sexta-feira tive a oportunidade de falar pessoalmente com a Ana Julia e agradecê-la pelo seu ativismo.
A CONANE é acima de tudo uma grande festa, uma festa popular educativa. Quero dizer isso metaforicamente, bem como literalmente. Após o dia 24, as festas juninas foram celebradas com todos os convidados, alunos e diplomados da ANE. Ali, entre música ao vivo, dança, brincadeiras em grupo, comida e bebida à luz da maior fogueira que já vi, um grupo de pessoas, de diferentes origens, origens sociais, identidade, cidadania, se reuniu para compartilhar o sonho de uma educação alternativa para o Brasil e a América Latina. Um espaço onde os princípios pedagógicos nos aproximam, mas o calor humano e o carinho nos mantêm unidos.
Até a próxima CONANE nacional, em novembro.
*Texto publicado originalmente no site Alter Edu