03/09/2020
Por José Pacheco
Itanhaém, 21 de agosto de 2040
No início deste século, a Ponte recebia milhares de visitantes. Oriundos de muitos países e continentes, a curiosidade os impelia a percorrer o mesmo itinerário do meu amigo Rubem Alves. O Rubem fora em busca da escola com que sempre sonhou, sem imaginar que pudesse existir. E a encontrou.
Mas, diz a sabedoria popular que “santos da porta não fazem milagres” e que “ninguém é profeta na sua terra”. Talvez por isso, raros eram aqueles professores que, sendo portugueses, visitassem… aquela portuguesa escola. Entre os raros visitantes lusos, alguns captaram e adotaram o “espírito da Ponte”. O meu amigo António foi um deles. Após a visita, esse excelente educador tomou a decisão ética de mudar a sua prática, para que todos os seus alunos pudessem aprender. E adentrou a via sacra dos disruptivos.
Numa escola sujeita a cartesianas segmentações, o amigo António era professor do “primeiro ciclo”. Com preocupação, via que, quando os seus alunos completavam esse ciclo e transitavam para o seguinte, quase todo o seu trabalho se perdia. Os jovens passavam a ser sujeitos a uma ensinagem que nada ensinava. Em poucos meses, os quatro anos de desenvolvimento de uma educação de excelente qualidade se dissipavam nas salas de aula do “segundo ciclo”.
Para que os seus alunos continuassem a beneficiar de efetivas aprendizagens, o António solicitou aos órgãos de direção e gestão do seu agrupamento de escolas a integração do “segundo ciclo” no projeto. Apresentou a fundamentação legal e científica da proposta. Porém, a maioria dos professores do “segundo e terceiro ciclo”, sem apresentar qualquer fundamento legal ou científico da decisão, indeferiu o pedido.
O amigo António não era homem de aceitar desaforo. Compreendeu que era já tempo de contestar lideranças tóxicas. Contrariando as indecorosas imposições dos seus pares, integrou o “segundo ciclo” no projeto. Acaso alguma múmia pedagógica viesse a oferecer oposição, não seria o António quem teria problemas – seria a múmia.
Quando milhares de professores colocaram idêntica decisão em ato, foram alvo de assédio moral, ameaças, perseguições. Aperceberam-se de que, se o maior aliado de um professor era o outro professor, o maior inimigo dos professores disruptivos era… o outro professor. A ditadura de maiorias silenciosas já havia destruído muitos bons projetos e obrigado muitos professores a marcar consulta em psiquiatria.
No Brasil desse tempo, havia escolas que, tendo banido as aulas, conseguiam garantir aprendizagem a todos. No decurso da pandemia e na contramão de um irresponsável “regresso às aulas”, essas escolas consolidavam um modelo misto de aprendizagem – presencial e virtual – e… perturbavam o instituído. Também sobre elas caiu a infâmia e o desrespeito de canalhas.
Gandhi dizia que ser tolerante não significa aceitar o que se tolera. Poder-se-ia aceitar que a paciência suportasse a injúria? Poder-se-ia tolerar que todas as atitudes fossem consideradas legítimas? Poderíamos incorrer num relativismo “tolerante”, onde verdade e mentira se equivaleriam? Poder-se-ia servilmente aceitar manifestações de prepotência? Que tolerância se poderia colocar, por exemplo, nos limites das lideranças tóxicas de gestores educacionais? Dever-se-ia tolerar o colapso ético, situações de desprezo pela vida e do não cuidar da infância, frente ao aceno do “regresso às aulas!? Essa “tolerância”, aliada à permissividade não permitiria que os tolerados impusessem as suas conveniências e caprichos?