11/02/2022

Tinha chegado o tempo de “desnaturalizar” a desistência

Por José Pacheco

Itakamozi, 4 de fevereiro de 2042

Netos queridos, para o vosso avô-coruja, o latino “ad-mirare” vai além do olhar com espanto, de contemplar com deleite, maravilhar-se. É sentir respeito, profunda admiração. Sois interlocutores do fim de um tempo anunciado pelos futurólogos do século XX. Vos admiro, por vos interessardes, em 2042, pelas deambulações da memória de um velho, que vos fala de assuntos considerados maçadores nos idos de vinte.

Já entrado nos setenta, a andarilhagem não tinha fim à vista. De Portugal para o Brasil, do Brasil para Portugal, enfrentando dolorosos PCR e correndo risco de contágio em aviões superlotados, ia ao encontro de novos e auspiciosos projetos. Ao cabo de dezenas de anos de dura militância, recebia pedidos de ajuda de autarquias, agrupamentos de escolas, secretarias de educação e educadores E eu não aprendera a dizer não.

De Portugal, chegava a notícia de que tínhamos um governo de maioria absoluta. Dessa vez, o ministério não teria desculpa alguma para não fazer a mudança necessária.

Essa fora uma boa notícia. A má notícia foi a de que a Teresa desistira de cumprir o projeto do Casal do Sapo. O diretor “não autorizava” e a minha amiga se resignava. Respeitei a sua decisão, mas não deixei de lhe sugerir que procurasse outro professor, para reassumir o projeto. Ou que as mães dos seus alunos se organizassem, para que o projeto da escola fosse cumprido. Em aprendizagem à distância, eu poderia ser tutor dos seus filhos. Desistir? Nunca! Tinha chegado o tempo de “desnaturalizar” a desistência.

Seria “natural” que se desistisse de sonhar, de amar e agir? Poder-se-ia considerar “natural” que um diretor não autorizasse um professor a ir até ao outro lado da rua com os seus alunos, para recolher um pássaro ferido? Ou que o senhor diretor exigisse de uma professora um pedido de “autorização superior”, se ela quisesse que os seus alunos convivessem com um pavão?

Havia quem pensasse ser legítimo “naturalizar” atitudes autoritárias. Era “natural” que o governo de um estado condicionasse o pagamento da merenda escolar à subordinação dos municípios a um modelo educacional destruidor de vidas. Era “natural” que umas “antas” investidas na função de supervisoras ameaçassem a Fabi, só porque essa extraordinária educadora pretendia colocar a sua escola dentro da lei. Era “natural” que o modelo educacional imposto à escola pela administração educacional a colocasse à margem da lei.

Nesse tempo, era naturalizado o que era “contranatura”. E, para manter o status quo, ou para garantir mordomias, até se chegava ao cúmulo de achar “natural” que ilegalidades fossem cometidas.

Na mitologia grega, Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, foi oferecida a Prometeu, que a recusou, temendo ser um ardil. Rejeitada, Pandora se casou com o irmão do titã. Zeus a presenteou com uma caixa, recomendando que jamais a abrisse. Curiosa, Pandora abriu a caixa. De dentro dela saltaram todos os flagelos da humanidade: guerras, mortes, múltiplas violências, pobreza, pandemias e… “naturalizações”.

Quando se apercebeu do mal causado, Pandora fechou a caixa, sem reparar que dentro dela ficara a… esperança.

Triste fiquei, quando a minha amiga Teresa sucumbiu perante as “naturalizações” sofridas. Exultei, quando outros educadores reabririam a caixa onde agonizava a esperança. Como fênix renascida, enfrentaram adversidades, duras provas.

O grande desafio da vida de educador era o “desnaturalizar”, suportar a dor da humana condição. Já dizia o poeta que, para passar além do Bojador, se teria de passar além da dor.

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