14/12/2022

Por um sistema de avaliação que fortaleça a Educação Integral e transformadora

Por Helena Singer* para o Centro de Referências em Educação Integral

A recuperação da democracia com a vitória apertada de Lula é motivo de forte alívio para todos os setores comprometidos com ela, e a promessa do vencedor de fazer mais e melhor em seu terceiro mandato anima e reativa as esperanças. Neste contexto, o período da transição entre os governos tem se mostrado rico em apresentação de propostas, articulações em torno das forças diversas que se uniram pela vitória e, como não poderia deixar de ser, muitas disputas. Inclusive, no campo da Educação.

Na Educação, as disputas são menos visíveis do que em outros setores, como a economia, as questões agrárias ou urbanas. Isso em grande parte porque entre todos os governos desde a democratização até Michel Temer (2016-2018), parece ter havido uma linha de continuidade marcada pela ampliação do acesso à escolarização e a adoção de uma política de monitoramento que deveria garantir sua qualidade.

Saeb, Ideb e a avaliação da Educação Básica

Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) foi criado nos anos 1990 como um conjunto de avaliações externas em larga escala. Inicialmente aplicado em uma amostra de escolas, com o passar do tempo, o sistema foi se agigantando até atingir, em 2007, a totalidade das escolas públicas brasileiras. O principal elemento do Saeb é a Prova Brasil, composta por testes de múltipla escolha em Língua Portuguesa e Matemática. O Saeb se completa com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) que sintetiza, em uma escala de zero a dez, a média de desempenho dos estudantes na Prova Brasil, a trajetória escolar (idade do estudante em relação ao ano de escolarização) e a permanência. Os resultados das escolas no Ideb têm grande impacto na distribuição dos recursos técnicos e financeiros do governo federal para os governos estaduais e municipais e destes para as escolas.

Passados tantos anos de uma política continuada, é necessário avaliá-la e espera-se que o novo governo o faça com rigor, cotejando os resultados obtidos em relação aos recursos investidos e informando para quê e a quem melhor tem servido este sistema.

Afinal, por seus próprios critérios, a Educação Básica no país evoluiu muito pouco neste período e segue ruim: em 2005, o Ideb do país foi 3,8 (anos iniciais do Ensino Fundamental), 3,5 (anos finais do Ensino Fundamental) e 3,4 (Ensino Médio). Em 2019, atingiu-se 5,9, 4,9 e 4,2 respectivamente para os mesmos anos. Por fim, os resultados de 2021 são controversos por causa da pandemia.

Avaliação externa e educação bancária

A visão que fundamenta o Saeb é de que se trata de uma ferramenta para o monitoramento do direito a aprender dos estudantes brasileiros. Os protagonistas dos debates sobre este sistema são, geralmente, especialistas em matemática, estatística e economia, que se aprofundam nos seus aspectos formais: a Teoria de Resposta ao Item garantiria a efetiva capacidade das provas para medir o domínio sobre o português e a matemática? Como aprimorar o indicador para melhor atuar em relação às desigualdades de gênero, raça e classe social? Como as escolas podem se apropriar dos resultados do Ideb para melhorar suas práticas?

Não é incomum que nesses debates afirme-se que “não importa a pedagogia”, o foco é a aprendizagem. Se a pedagogia for boa, isso se evidenciará nos resultados das provas. O equívoco nesta visão de não-educadores é que o sistema de avaliação é profundamente carregado de uma determinada pedagogia. A pedagogia orientadora do Saeb é a que propõe o processo cumulativo do conhecimento e a prioridade dos conteúdos quantificáveis, o que possibilita a seriação, a recuperação, o treinamento para provas. Também se trata da pedagogia que associa a aprendizagem ao disciplinamento de corpos, a individualização dos processos de conhecer e a primazia da competição. Daí a forma das provas aplicadas com os alunos enfileirados em carteiras, sem poder conversar entre si ou consultar fontes e os resultados apresentados em rankings. Por fim, trata-se da pedagogia que dissocia conhecimento, sempre supostamente objetivo, de atitudes,  comportamentos e valores. Ou seja, ser capaz de responder corretamente perguntas-teste é mais importante – porque é o mínimo, o fundamento de tudo – do que de fato usar a língua portuguesa, a matemática ou conhecimentos de qualquer outra área para melhorar o mundo. Tudo isso é pedagogia. A pedagogia que foi chamada por Paulo Freire de educação bancária.

Educação integral e transformadora sustenta-se sobre outras bases. Seu objetivo é criar as condições para que as pessoas possam se desenvolver integralmente, reconhecendo a necessidade de articulação de diversos agentes, tempos e espaços para a multiplicação das oportunidades de aprender. Busca-se formar pessoas capazes de se sensibilizar em relação ao mundo, colaborar em equipes ou coletivos, criar soluções para os desafios do presente, expressar as potências humanas nas suas diversas linguagens e efetivamente promover mudanças positivas. Trata-se de um conjunto articulado e complexo de valores, conhecimentos, habilidades e atitudes que se desenvolvem em práticas cotidianas de tomada de decisão e responsabilização pelo bem coletivo, na convivência com os diferentes, na pesquisa aplicada e na realização de projetos.

Os sujeitos da avaliação

Além de ter uma clara pedagogia, o Saeb também se fundamenta em uma profunda desconfiança em relação à capacidade de escolas e educadores em realizar seu ofício. Por isso, os agentes das escolas – equipes, estudantes e famílias – não participam dos debates sobre avaliação. Também não participam da elaboração dos instrumentos, da sua aplicação (durante as provas, os professores não podem ficar nas salas) e nem mesmo das decisões decorrentes de seus resultados, que chegam às escolas muitos meses depois, quando já são outras as turmas de estudantes.

Em sentido contrário aos pressupostos dos idealizadores deste sistema, as escolas que se orientam pela Educação Integral e transformadora desenvolvem uma multiplicidade de ferramentas que lhe permitem monitorar as aprendizagens e o desenvolvimento de seus estudantes.

O programa Escolas 2030, coordenado no Brasil pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e pela Ashoka, constata que essas escolas elaboram diversos instrumentos, que incluem autoavaliação, avaliação em processo, avaliação para aprendizagem, além da avaliação institucional envolvendo todos os segmentos da comunidade.

Claro que não são todas as escolas do país que assim o fazem. Mas, um sistema de avaliação da qualidade da Educação que considere as comunidades escolares como sujeitos do processo deve estimular que isso aconteça. Assim, a recomendação do programa é para que as secretarias responsáveis pela oferta da Educação Básica mapeiem, apoiem e difundam em suas redes “procedimentos e instrumentos de avaliação desenvolvidos pelas unidades educacionais que consideram as especificidades de crianças, jovens e adultos/as e abrangem aprendizagens necessárias ao pleno desenvolvimento da pessoa, como empatia, colaboração, autoconhecimento, criatividade e protagonismo.  A difusão destes procedimentos e instrumentos deve se fazer acompanhar por processos de formação contínua para a sua qualificada implementação”.

Um novo sentido de qualidade da Educação

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) definiu o direito de todos à Educação, mas como esse direito se concretiza? O país tem respondido a esta questão primeiro reduzindo a Educação à escolarização, ao centrar as políticas, programas e recursos na ampliação do acesso das crianças, adolescentes e jovens às escolas. A seguir, definiu-se que o monitoramento a este direito se daria através das provas e do Ideb. A questão é que estes instrumentos monitoram, de fato, aspectos muito reduzidos da aprendizagem, como a capacidade de responder a testes.

Além disso, os resultados são atribuídos exclusivamente às equipes escolares. Assim, quando o Ideb da escola é baixo, não há alterações nas condições de vida das famílias, nem na infraestrutura escolar ou nas condições de trabalho da sua equipe. O que acontece é a exposição da escola como ineficaz junto às famílias, rede e mídia e, muitas vezes, a compra pelas secretarias de “soluções”, como materiais didáticos, treinamento de professores ou sistemas de gestão da vida escolar. Já quando os resultados são bons, frequentemente, a equipe é premiada com bônus salariais.

É prioritário que o novo governo crie as condições para a elaboração de um novo sistema de avaliação, envolvendo todos os atores do sistema na formulação de instrumentos e indicadores. Avaliar é exercício de poder, hoje concentrado nas mãos de poucos. É preciso distribuir este poder, possibilitando às equipes escolares, estudantes e famílias avaliarem governos e políticas e, assim, consolidar-se no país uma visão compartilhada de qualidade da Educação sobre a qual todos são responsáveis.

Para além das aprendizagens dos estudantes que, como dito acima, são adequadamente monitoradas por muitas escolas, cujas ferramentas e dispositivos devem ser melhor conhecidos e valorizados, há que se monitorar também os resultados da Educação em relação à qualidade de vida dos estudantes e da comunidade em geral. Assim, a sociedade valorizará aspectos tais como o acesso das famílias às políticas de bem-estar, saúde e outras que garantem as condições adequadas para as crianças se desenvolverem, os baixos níveis de violência dentro e fora da escola, o engajamento dos estudantes em projetos de impacto socioambiental, as condições tanto para a continuidade dos estudos quanto para a permanência dos jovens em seus territórios, realizando-se pessoal e profissionalmente.

A consolidação da democracia no Brasil depende da superação definitiva de uma visão de Educação reduzida ao que chamam de “aprendizagem de habilidades básicas”. Afinal a democracia não se sustenta apenas com o arcabouço legal e institucional, como vemos no crescente apoio da população mais escolarizada ao fascismo. A democracia só existe se a população a valoriza, sabe participar dos processos de decisão e se responsabilizar pelo bem comum.

 

*Helena Singer é socióloga, com mestrado e doutorado pela USP e pós-doutorado em Educação pela Unicamp. Vice-presidente da Ashoka América Latina e coordenadora do Movimento de Inovação na Educação

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