17/11/2022

Por que e qual Educação Integral agora?

Por Natacha Costa*

A agenda de Educação Integral tem merecido atenção no debate público nos últimos anos no Brasil. Positivamente, esta perspectiva apareceu na maior parte das propostas de governo dos candidatos à presidência no último pleito, ainda que existam divergências de concepção entre elas. Parece, portanto, consenso (pelo menos no campo democrático) que a ampliação da jornada escolar é uma medida necessária para o direito à educação no Brasil, questão inclusive amparada pelo Plano Nacional de Educação – PNE (2014-2024).

Reforçando a relevância desta agenda, em entrevista ao apresentador Paulo Vieira durante a campanha eleitoral, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva abordou a Educação Integral defendendo não apenas a ampliação da jornada, mas também a importância da oferta educacional contemplar oportunidades para que as crianças pratiquem esportes, aprendam questões ambientais, música, teatro, entre outras atividades.

Em sua breve defesa, o presidente parece apontar para uma concepção que vai, portanto, além da ideia de tempo integral, reafirmando um projeto educativo que privilegie o desenvolvimento de crianças e adolescentes em todas as suas dimensões – social, emocional, cultural, física e intelectual. Lula também aponta nesse contexto para a importância de que a escola se converta em um espaço mais atraente para as crianças.

Uma breve história da Educação Integral

A concepção abordada por Lula tem história no Brasil. Podemos localizar sua gênese no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, considerado um documento de referência na luta em defesa da escola pública no país e proposto por um movimento do qual Anísio Teixeira (1900-1971) foi um dos expoentes.

Em sua obra, o educador abordava o papel da instituição escolar para a democratização do país e para o enfrentamento das desigualdades sociais. Apontava que os altos índices de evasão e repetência das escolas brasileiras, já na década de 1930, eram resultado da desconexão entre a escola — baseada em modelos tradicionais — e os interesses e necessidades dos estudantes. Nesse sentido, Anísio propunha que as escolas brasileiras fossem de tempo integral e que vinculassem atividades relacionadas aos conhecimentos formais a atividades físicas, esportivas, artísticas, literárias, entre outras (CHAGAS; SILVA; SOUZA, 2012).

Na década de 1980, no Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro — inspirado pelas ideias de Anísio Teixeira, de quem era grande entusiasta — fundou os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Os CIEPs, seguindo o exemplo da escola-parque de Anísio, surgiram com uma proposta arquitetônica arrojada, inaugurando uma oferta educativa que incorpora o esporte e a cultura, bem como políticas de assistência social, de segurança alimentar e de saúde. É assim que os CIEPs contribuem com uma dimensão fundamental da Educação Integral, qual seja, a “intersetorialidade” — o direito à educação compreendido como indissociável dos demais direitos sociais.

A partir dos anos 2000, a agenda da Educação Integral é retomada com a criação dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), na cidade de São Paulo; células que, além de articularem educação, esporte e cultura, dão corpo a uma modalidade de gestão democrática e participativa.

O impulso é seguido por experiências análogas em Belo Horizonte, com a Escola Integrada, e o Bairro-escola Nova Iguaçu — que estendem a jornada escolar articulando os espaços físicos e os agentes educativos dos territórios como elementos estruturantes do currículo. Aquelas duas experiências impulsionaram durante o segundo mandato de Lula o Programa Mais Educação (PME), criado em 2007 por meio do Ministério da Educação que alcançou mais de 60.000 escolas no país. O PME estimulava a participação de diferentes atores, a conexão entre a escola e seu entorno e uma coordenação política intersetorial e descentralizada.

Era princípio do programa, portanto, que cada território pudesse constituir os arranjos adequados para cada realidade. Uma proposta contextualizada e alinhada com a complexidade de um país continental, diverso e desigual como o Brasil.

Os efeitos dos desmontes educacionais 

A despeito da pactuação materializada no Plano Nacional de Educação e da significativa escala que experiências bem-sucedidas de Educação Integral ganharam, os últimos anos foram marcados pelo abandono do plano e pelo desmonte das políticas educacionais.

Embora a meta 6 do PNE tenha estabelecido até 2024 a oferta de educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas e para ao menos 25% dos estudantes da educação básica, “entre 2014 e 2020, o número de escolas com jornadas em tempo integral caiu de 42.655 para 27.969 – que representam 29% e 20.5% das escolas públicas – e as matrículas de 6.5 milhões para 4.8 milhões”, de acordo com dados do site De Olho nos Planos.

Leia + Dez propostas para retomar a agenda da Educação Integral no Brasil

Nesse período, os principais programas a nível federal para a meta foram descontinuados. Além disso, segundo o Resumo Técnico do Censo Escolar, produzido pelo INEP, o Ensino Fundamental sofreu grave redução no percentual de matrículas em tempo integral de 2015 a 2019. Em 2015, 19, 4% dos estudantes no ensino fundamental permaneciam sete horas diárias ou mais em atividades escolares. Em 2019, esse percentual caiu para 10, 9%.

Por sua vez, o contexto da pandemia anunciou desafios ainda maiores ao direito à educação no país. E nesse contexto, o agravamento das desigualdades e a violação de direitos no Brasil tem impactado com mais intensidade as crianças e adolescentes pobres, negros, indígenas e com deficiência, meninas e meninos pertencentes a territórios periféricos e comunidades tradicionais.

Segundo dados de pesquisa conduzida por Marcelo Neri, da FGV, por exemplo, a pandemia representou um agravamento das desigualdades educacionais – quanto mais pobre o estudante, menor era frequência, menor era a quantidade de atividades realizadas e de tempo dedicado aos estudos. Além disso, com a pandemia houve uma piora importante nos índices relacionados a trabalho infantil e exclusão escolar, dados que vinham sofrendo queda em anos anteriores.

Educação Integral, uma pauta prioritária 

Nesse contexto e com vistas a pactuar uma agenda de defesa de direitos de crianças e adolescentes, a Agenda 227, movimento composto por mais de 150 organizações, construiu coletivamente um documento de referência com propostas para o próximo governo. Entre estas propostas, entidades e redes representativas do campo educacional constituíram um grupo de trabalho para a proposição de pautas prioritárias ao direito a educação no Brasil. Com coordenação do Centro de Referências em Educação Integral, participaram do GT de Educação:

ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Associação Cidade Escola Aprendiz, Avante – Educação e Mobilização Social, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Colegiado Indígena da PPGAS/UFAM, CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, FMCSV – Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Geledés – Instituto da Mulher Negra, IEDE – Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional, Instituto Alana, Instituto Rodrigo Mendes, MIEIB – Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil, Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte/MG, Rede In – Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, RNPI – Rede Nacional Primeira Infância, UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação, UNDIME – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância e United Way Brasil.

Como resultado dos debates e estudos, o GT de Educação pactuou 10 propostas consideradas prioritárias para a educação tendo como ponto de partida o Plano Nacional de Educação e o atual contexto.

Entre as propostas, consta a retomada da agenda de educação integral no país. O grupo propõe que o MEC nesta nova gestão defina diretrizes orçamentárias e de gestão para a implementação da educação integral e ampliação da jornada escolar em toda a Educação Básica, com especial atenção à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental e com prioridade para as crianças e estudantes em situação de maior vulnerabilidade social. Esta proposta deve envolver o Ministério da Educação em diálogo com pastas afins aos direitos de crianças e adolescentes, em colaboração com estados, DF e municípios e se concretiza nas seguintes metas e ações:

1. Oferecer Educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos(as) alunos(as) da Educação Básica.

2. Institucionalizar e implementar a política nacional de educação integral com definição de diretrizes, modelo de gestão e orçamento que oriente as políticas de currículo, avaliação, formação de profissionais e de ampliação de jornada escolar em colaboração com estados e municípios.

3. Formular e implementar políticas de currículo, avaliação e formação dos profissionais de educação alinhadas à concepção de Educação Integral abrangendo todas as escolas de educação básica em colaboração com estados, DF e municípios.

4. Formular e implementar em colaboração com estados e municípios, políticas curriculares que respeitem a autonomia das escolas na construção de seus projetos político pedagógicos e a organização de tempos e espaços de acordo com os contextos e a participação das comunidades escolares.

5. Formular políticas de avaliação que monitorem constantemente os processos de aprendizagem e desenvolvimento integral, a fim de que não apenas estejam associados ao desempenho escolar, mas também incluam outros indicadores, como sociabilidade, convivência, participação na vida pública, respeito à diversidade e protagonismo dos estudantes.

6. Formular e implementar em colaboração com estados e municípios, políticas de formação inicial e continuada que reconheçam a profissionalidade dos trabalhadores da educação como produtores de conhecimento e agentes na formulação e implementação das políticas e práticas educativas;

7. Implementar política de ampliação da jornada escolar, prioritariamente para os estudantes em situação de menor nível socioeconômico com equidade racial, gênero, território e, no caso das pessoas com deficiência, concomitante à oferta do AEE;

8. Fortalecer instâncias e mecanismos de participação da sociedade civil na formulação e implementação da política nacional de educação integral para garantir a qualidade e continuidade dos programas;

9. Promover uma gestão intersetorial, que articule as políticas de educação integral às políticas de assistência social, saúde, cultura e demais pastas para a garantia do direito à educação;

10. Fomentar políticas que efetivem a articulação intersetorial das escolas com equipamentos públicos e organizações sociais na perspectiva do compartilhamento do processo de formação de crianças, adolescentes e jovens com diferentes atores e espaços dos territórios.

11. Definir diretrizes orçamentárias e de gestão para atingir as coberturas previstas no Plano Nacional de Educação (Meta 1) e para o aumento de oferta de vagas, em tempo integral, na educação infantil, com prioridade para as populações vulneráveis, com o objetivo de garantir o acesso pleno à alimentação, aos cuidados e à educação para as crianças de zero a quatro anos.

Em suma, trata-se de considerar a Educação Integral em três níveis complementares:

  1. Como concepção orientadora das políticas de currículo, avaliação e formação de professores, não apenas como uma modalidade com vistas a superar que a educação integral siga restrita aos programas de ampliação de jornada resistindo às políticas de currículo, avaliação e formação que invariavelmente vão na contramão desta concepção;
  2. Como política de ampliação da jornada para a educação infantil e o ensino fundamental, com prioridade para crianças e adolescentes em situação de maior vulnerabilidade. Nos últimos anos houve um esvaziamento do investimento nessas etapas, ficando quase inteiramente a cargo dos municípios. Por sua vez, muitas das políticas de tempo integral no ensino médio vão na contramão do que propomos. Pesquisas mostram que o modelo atual de escola de tempo integral nesta etapa em alguns estados promove processos de seleção social, atendendo a jovens com melhores condições socioeconômicas e criando “ilhas de excelência” nos territórios, medidas que aprofundam as desigualdades sociais e educacionais ao invés de enfrentá-las, compromisso fundamental da Educação Integral;
  3. Como política articulada às demais políticas sociais, tendo a Intersetorialidade como estratégia inegociável. Com os impactos do desmonte das políticas sociais agravado pela pandemia, é fundamental formular políticas educacionais de forma articulada às demais políticas sociais. Para efetivar o direito à educação em um país com o nível de insegurança alimentar e demais violações observadas hoje no Brasil, a intersetorialidade deve estar na matriz de todas as políticas educacionais.

Experiências nos últimos anos e, em especial na pandemia, foram conclusivas em mostrar que a Educação Integral é concepção-chave para a efetivação do direito à educação no país. Diferentes municípios e estados têm demonstrado a relevância destas políticas para o enfrentamento das desigualdades sociais, raciais e territoriais.

É o caso de Diadema (SP), Manaus(AM), Almirante Tamandaré (PR), Santos (SP), Belém (PA) e o Estado da Bahia. Não faltam, portanto, ao Brasil motivos e tampouco entidades, organizações, redes, pesquisas, estudos, assim como políticas municipais, estaduais e escolas públicas com experiencias e conhecimentos capazes de mostrar o caminho pedagógico, político e institucional  a partir da Educação Integral.

Nesta nova chance que o Brasil tem de retomar sua constituição como Estado Democrático de Direito, é fundamental que não adiemos mais uma vez a luta de Anísio Teixeira por uma educação compreendida como direito. Uma educação que supere a tradição brasileira de escolas que selecionam e classificam seus alunos e que coloca em seu lugar condições para o fortalecimento de escolas públicas comprometidas com uma formação cidadã, inclusiva e absolutamente orientada para o enfrentamento das desigualdades, nomeadamente do racismo que aparta desde a primeira infância milhões de brasileiros e brasileiras de sua condição de sujeitos de direitos. Exige superar e não reproduzir, como Miguel Arroyo nos sugere, no próprio campo da ação pedagógica os “modos de pensar e tratar os outros como sub-humanos”. Exige posicionar a educação como chave da guinada civilizatória que o Brasil não tem mais o direito de postergar.

Assim, a relação intrincada entre educação e democracia está na base da proposta de Educação Integral que defendemos. Os últimos anos e as ameaças a que estivemos e que, em alguma medida ainda estamos expostos, deixam evidente que não podemos nos dar ao luxo de renunciar a tal perspectiva nem mais um dia.

*Natacha Costa é diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz desde 2006. Psicóloga formada e licenciada pela PUC-SP e mestranda na Faculdade de Educação da USP. Atualmente é membro do Conselho Estratégico Universidade-Sociedade da Unifesp, do Movimento de Inovação na Educação, do conselho gestor do Observatório Nacional de Educação Integral da UFBA, do conselho consultivo do programa Escolas 2030 no Brasil , do Coletivo Articulador do Centro de Referências em Educação Integral e do Grupo de Coordenação e Articulação da Agenda 227.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

Plano Nacional de Educação. Brasília, 2014.

Plano País para Infância e Adolescência. São Paulo, 2022.

ARROYO, Miguel. Outros sujeitos, outras pedagogias, Petrópolis: Vozes, 2014.

AZEVEDO, Fernando de [et al.]. Manifestos dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959) Fernando de Azevedo [et al.]. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

CHAGAS, Marcos Antonio M. das; SILVA, Rosemaria J. Vieira; SOUZA, Silvio Claudio, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro: Contribuições para o debate atual, pp 72-81. IN: MOLL, Jaqueline et. al, Caminhos da Educação Integral no Brasil: Direito a outros tempos e espaços educativos, Porto Alegre: Editora Penso, 2012.

TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.

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