20/05/2022
Transformação é a palavra que melhor define a trajetória da Escola Municipal Waldir Garcia, em Manaus, reconhecida internacionalmente pelo projeto de educação integral que vai além da sala de aula e une estudantes, professores, familiares e toda comunidade às margens do igarapé do bairro de São Geraldo, região de alta vulnerabilidade social da capital amazonense.
Com métodos que ressignificam o conceito do ensino tradicional, a instituição apoia-se na pedagogia do cuidado para mostrar ao mundo que a escola pode ir além e projetar o estudante como protagonista de sua aprendizagem.
Sob a gestão da diretora Lúcia Cristina Cortez, Waldir Garcia deixou para trás um passado de abandono e evasão escolar para, em 2015, com o surgimento do Coletivo Escola Família Amazonas, tornar-se uma das primeiras escolas da região Norte a mostrar ao mundo que, através do diálogo e da colaboração, é possível educar.
Confira a conversa que o Centro de Referências em Educação Integral teve com a educadora e conheça mais sobre a escola que inspira o Brasil e o mundo.
Centro de Referências em Educação Integral: O que faz da Waldir Garcia uma escola de educação integral?
Lúcia Cristina Cortez: A Waldir Garcia vive de acordo com a concepção da educação integral que é se posicionar e educar na centralidade do processo educativo, respeitando as singularidades, sabendo que cada criança e cada jovem tem seu tempo e seu ritmo de aprender. Mas, principalmente, respeitando a diversidade e a sustentabilidade.
Então, é uma escola que vê esse estudante como protagonista da sua aprendizagem e os professores como mediadores desse processo. O estudante é responsável pela sua aprendizagem, que é compartilhada com a sua família e todos os atores educacionais. Nós trabalhamos com essa corresponsabilização da educação. A Waldir Garcia vive a educação integral porque respeita o sujeito em todas as suas dimensões – emocional, social, cultural, física e intelectual-,vendo-o na sua integralidade. Ou seja, somos uma escola que vive a educação integral na prática.
Nesse sentido, ressignificamos também a avaliação, trabalhando com o método de autoavaliação que dialoga com os interesses dos estudantes, com um currículo que atende às competências desses estudantes do século 21. Conseguimos ressignificar currículo, formação, os tempos e os espaços, vendo a importância desses territórios, do entorno e como são importantes para a aprendizagem das crianças. Respeitamos esses saberes dos territórios, esse currículo integrado e integrador, contextualizado com todos.
CR: Quem são os estudantes, as famílias e as comunidades atendidas pela escola?
Lúcia: A escola atende a uma comunidade de alta vulnerabilidade social, porque estamos localizados às margens do igarapé onde sofremos com as alagações. A maioria dos nossos estudantes vive em palafitas e sofrem no verão com os grandes incêndios, enquanto na época das cheias, sofrem com as casas alagadas, o que também atinge uma parte da escola. Convivemos com a fome, com a miséria, com a falta de moradia, alimentação, saúde e é um grande desafio.
Além disso, recebemos um número considerável de imigrantes e refugiados, porque a escola trabalha tentando diminuir as desigualdades sociais e somos uma escola que respeita as diversidades, as diferenças, uma escola que luta e coloca a inclusão em prática.
Por isso, a procura por parte dessas pessoas excluídas do processo de ensino é muito grande. Hoje temos uma demanda muito grande de alunos com distorção idade-série, que não dominam o idioma, crianças com deficiência, então todos aqueles excluídos encontram na Waldir Garcia o acolhimento, que é a palavra-chave para todas essas pessoas que vivem essas desigualdades.
É uma escola que abraça, que acolhe, que aprende na diferença, na diversidade. Então é esse o nosso grande desafio, enfrentar essa pluralidade cultural, aprendendo, somando e crescendo na luta contra a fome, a falta de moradia e todas as dificuldades que vive grande parte da sociedade no Brasil. Uma escola que valoriza as pessoas por serem pessoas, criando um espaço humanizado e humanizador e de muito afeto, porque trabalhamos a pedagogia do cuidado, trabalhando o amor e o respeito ao outro. Vidas importam e lutamos para garantir a todos o direito de aprender.
CR: Quais as principais estratégias da escola durante a pandemia e na retomada das atividades presenciais?
Lúcia: Desde o começo da pandemia, decidimos que iríamos abrir a porta para atender às crianças, porque nós víamos a escola como um lugar seguro para estudantes em situação de risco. A escola também se tornou acolhida para pessoas em situação de rua e, junto com os Médicos Sem Fronteiras [organização internacional de ajuda humanitária], acolhemos os indígenas, passando a se tornar um hospital de campanha. Soubemos abrir esse espaço para acolher a todos e entregamos, através de arrecadação, cestas básicas para 134 famílias, celulares para 27 crianças para que pudessem manter contato com a escola pela internet, além de televisores onde transmitimos o programa “Aula em Casa” por meio de um canal aberto.
Conseguimos mobilizar a sociedade para suprir essas necessidades básicas, principalmente de alimentos para essas famílias. Na retomada, nos mobilizamos com diversos setores da sociedade e conseguiu colocar equipamentos de álcool em gel, termômetro, fizemos assembleias comunitárias remotas, nos mobilizamos para fazer uma busca ativa e atender de forma segura, para retomar as atividades presenciais 100%.
Foi uma escola que soube se mobilizar, no coletivo, com as famílias, se apoiar e organizar atividades em busca de estratégias para trazer todas as crianças para a escola. Trabalhamos muito os roteiros de estudo, respeitando o tempo e o ritmo delas, para personalizar esse ensino e fazer um trabalho individualizado.
CR: Como é o diálogo com as famílias e a participação delas na escola?
Lúcia: Mantemos um diálogo muito bom com as famílias, porque elas têm uma participação direta na escola e, a cada ano, aumenta e intensifica o engajamento delas na nossa rotina escolar, tornando-se uma grande estratégia na pandemia e também nesse retorno.
Hoje a escola não funciona sem as famílias, por isso atuamos com vários espaços de escuta, diálogo e participação direta, vivendo uma gestão democrática e participativa tanto na parte pedagógica, administrativa e financeira.
Nós temos pais tutores com as crianças, tutores com os funcionários, em que trabalhamos essa formação continuada. Temos também as assembleias, onde todas nossas decisões são tomadas no coletivo, envolvendo as famílias, já que rompemos com aquela reunião de pais tradicional, que entregava de boletins, onde só a escola falava.
Fazemos nossas reuniões com rodas de conversa, onde ouvimos mais do que falamos e ouvimos as sugestões dos pais, para que eles se envolvam em todas as ações da escola. Assim, criamos várias frentes de trabalho, com os grupos formados pelos pais, com base no levantamento das profissões deles: desde o eletricista, carpinteiro, pedreiro que formam frentes de trabalho e cuidam da escola para criar uma educação compartilhada.
Quando trazemos eles pra escola, temos essa interação e, juntos, compartilhamos todos os saberes de território. É como dizia Paulo Freire, não é quem sabe mais ou quem sabe menos, são saberes diferentes e todos são bem-vindos, porque eles se sentem pertencentes a esse espaço, criando um empoderamento familiar, já que a escola também é deles.
CR: E a participação dos estudantes?
Lúcia: Nossos estudantes também são protagonistas. Criamos um espaço de diálogo em uma assembleia que acontece todas as sextas-feiras, quando tomamos as decisões e discutimos assuntos importantes com os estudantes desde o primeiro ano.
Existe uma lousa na entrada da escola onde eles escrevem os assuntos a serem discutidos, a pré-assembleia na sala de aula e depois reunimos toda a escola para discutir as sugestões e vota.
Investimos muito em quatro pilares, que são: protagonismo, empatia, trabalho em equipe e criatividade.Tem também dois momentos de escuta, que é a tutoria e os roteiros de estudo.
As tutorias são rodas de conversa com o tutor, que não têm o foco na aprendizagem, mas em estabelecer uma relação de confiança e amizade para nenhum estudante ficar para trás. As rodas servem pra conhecer a família, conhecer o estudante, acompanhá-lo bem de perto e estabelecer essa relação de confiança, conversar sobre tudo que ele sente, tudo o que ele acha importante.
Os roteiros de estudo, que propiciam que ele estude sozinho e seja responsável pela sua aprendizagem, estimulando essa autonomia.
Abrimos mão das filas, não temos mais carteiras, exatamente para trabalhar em mesas, valorizando o trabalho em equipe e em grupo para que eles possam se olhar, interagir e ajudar. A escola estimula essa cultura colaborativa na qual um ajuda o outro, e diminui a competição entre eles, já que não estudam para uma prova com avaliações tradicionais.
Nenhum estudante é reprovado, porque trabalhamos com avaliação formativa e foco na aprendizagem, identificando as dificuldades e trabalhando com intervenções pedagógicas, sendo uma avaliação qualitativa. O aluno faz sua autoavaliação, atribui uma nota para ele e, a partir daquela nota, a gente atribui a todas as disciplinas.
Com isso, acabamos com a fragmentação de matérias, investimos nessa interdisciplinaridade, porque nosso foco é a aprendizagem e não uma nota, um número, uma avaliação quantitativa, meritocrática, que muitas vezes pune os estudantes. Apostamos nessa avaliação qualitativa, em que ele coloque sua nota e não seja abaixo de cinco, que é a média da secretaria municipal de educação. Com isso, acabamos com a reprovação na escola desde 2015, estimulando essa participação dos estudantes para ter um olhar crítico, reflexivo, e que se veja como agente de transformação no seu processo de aprendizagem.
CR: Quais são as práticas pedagógicas de referência da escola?
Lúcia: A escola vive a inclusão, a palavra-chave dessa escola é o acolhimento, é respeitar as diferenças, a diversidade, propiciar que todos aprendam. Garantir a todos o direito de aprender e investir nas metodologias ativas, nos roteiros de estudo, no professor como mediador, na exploração e valorização dos diversos territórios próximos à escola, dos espaços públicos.
Então, é vendo esse estudante como protagonista, trabalhando com essas metodologias ativas que chegamos a uma aprendizagem significativa. Nos vemos como uma escola pós-sala de aula, que avançou muito no processo educativo e na formação continuada. Estudamos, ensinamos e sabemos o que queremos estudar, o que é importante para o nosso currículo e, a partir das nossas necessidades, focamos na nossa formação em serviço.
Hoje nos vemos como educador, pesquisador, e vive essa pesquisa-ação, valoriza nossos educadores leitores, uma escola que vive todo esse espaço de favorecimento à leitura, tanto nossos estudantes como os funcionários, porque todos os funcionários são educadores e importantes nesse processo. Valorizamos e os trazemos para participar da formação, desde o porteiro à merendeira, que têm muito a contribuir como tutores e como atores na educação do estudante. Envolvemos todos os segmentos para acabar com a burocratização, verticalização, queremos viver essas relações horizontais de muito respeito, em que um ao lado do outro seja colaborador nesse processo de ensino e aprendizagem.
CR: Como essas práticas levam aos bons resultados que a escola apresenta?
Lúcia: A escola é referência de inclusão porque vive essa inclusão, essa equidade. Uma escola que passo a passo foi melhorando o resultado do Ideb. Saímos de 3.5 para 4.4, 5.8, e por três avaliações externas nós fomos 7.4, 7.4 e 7.5, garantindo a todos o direito de aprender. Uma escola que apresenta bons resultados nas avaliações externas sem trabalhar as avaliações tradicionais prova que romper com a cultura da reprovação foi muito importante, porque elevamos a autoestima dos estudantes.
Nós valorizamos esses saberes da escola, que soube ressignificar e se desconstruir para romper com a escola tradicional que incentivava as desigualdades, reprovação e exclusão para viver uma escola inclusiva.
Esse trabalho em equipe, engajando as famílias, a comunidade do entorno, esse envolvimento de todos os setores da sociedade, uma vez que trabalhamos de forma intensa a intersetorialidade vem conseguindo vencer todos esses desafios e transformando em bons resultados nas avaliações externas. Porque é uma escola que valoriza a pedagogia do cuidado, que valoriza as pessoas como elas são.
CR: Qual o papel da gestão no trabalho da Waldir Garcia? Por que é considerada uma escola de referência para o Brasil e para o mundo. De que redes vocês participam hoje?
Lúcia: Trabalhamos desde 2016 com a gestão colaborativa, estimulando nessas relações horizontais uma gestão participativa, de mãos dadas, um ajudando o outro, colaborando para viver essa gestão democrática. Trabalhando autoregulação, autoconhecimento, empatia, protagonismo, colaboração, praticamos a pedagogia do cuidado: eu cuido de mim, que cuido dos outros e esse cuidado reverbera para o mundo. Vivemos pra cuidar, pra acolher, abraçar. Acho que essa é a gestão da Waldir Garcia, uma gestão que vive a democracia.
Nesses anos em que trabalhamos para superar esses desafios e buscando novas metodologias para alcançar a aprendizagem de todos, acredito que ela vá se tornar uma referência na inclusão. Uma escola que promove não apenas um ensino de qualidade, mas um ensino de qualidade profunda, no qual as pessoas se identificam e se veem nesse processo.
Uma escola que soube mudar toda sua metodologia, sua gestão, ressignificando e desconstruindo para viver essa gestão democrática e se tornou referência no Brasil, mostrando que é possível uma escola com alta vulnerabilidade social propiciar um ensino de qualidade, e que acredita no poder de transformação da educação.
Existem várias publicações que mostram o trabalho da Waldir Garcia: em Bogotá, na Colômbia; um livro que vai ser lançado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos até o final do ano, em que a escola relata o seu trabalho com outras instituições. No Brasil, participamos do programa Escolas2030 junto com a Ashoka. Integra o conselho consultivo do Centro de Referências em Educação Integral; com a Unesco, estamos na rede de líderes escolares mundiais e, com o Unicef, criamos a plataforma Edumigra, para mostrar a outros professores como conseguimos trabalhar com imigrantes e refugiados que chegam sem dominar o idioma.
A Waldir Garcia participa de várias redes nacionais e internacionais porque rompeu barreiras, quebrou muros e extrapolou os limites da escola para criar pontes, solidarizando-se, ensinando e aprendendo nessas diversas redes do Brasil e do mundo.
Texto publicado originalmente no site do Centro de Referências em Educação Integral