16/12/2019
As crianças da escola Polo São Lourenço, à beira do rio Paraguai, sabem identificar pela escamas os nomes de todos os peixes. Com um conhecimento de quem nasceu com os pés nas águas, elas reconhecem lugares de pesca, quais cardumes são bons para comer ou vender, além das bestas mitológicas que habitam o leito do rio.
São Lourenço é uma das 11 escolas das águas localizadas no município de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Fundadas em 1997, esses espaços pedagógicos possuem um calendário escolar diferenciado, respeitando as cheias do rios Taquari e Paraguai, possibilitando que mais de 300 crianças oriundas de comunidades de ribeirinhos, assentados, pescadores e outras populações possam estudar.
Desde 2015 a ONG Ecoa atua junto com as escolas e o governo local, desenvolvendo um currículo que não somente respeite as cheias dos rios, mas também incorpore nele os saberes locais.
“Promovemos um fortalecimento pedagógico das 11 escolas com a formação dos professores. Também participamos pontualmente de ações políticas locais, ajudando a resolução de conflitos, como a de um grupo de extrativistas como uma mineradora, por exemplo”, explica André Luiz Siqueira, diretor presidente da organização.
“Nas escolas das águas, o calendário escolar é determinado pelas especificidades do curso da inundação do Pantanal”, afirma André. São os rios voluntariosos que determinam se as escolas vão fechar, tanto por questões estruturais, como inundações e saneamento, como por naturais, como repiques de mosquito.
“Todo o transporte escolar é feito fluvialmente, além dos barcos-escolas, que são adaptados para lidar com as cheias extraordinárias”, complementa o diretor. Como leva cerca de seis horas para chegar até a maioria das comunidades, as escolas funcionam, em sua maioria, em regime de internato: os alunos e educadores permanecem nas escolas durante todo o bimestre, ou voltam para casa somente no fim de semana.
Embora haja uma divisão oficial entre escolas das águas e escolas da terra, o educador que faz Pedagogia na maioria das vezes não é preparado para absorver as peculiaridades locais do território e aplicá-las dentro da sala de aula. Foi isso que Patrícia Zerlotti, coordenadora do projeto até 2016 e hoje conselheira, identificou:
“O professor às vezes acaba por trabalhar no mesmo molde, não importa onde esteja. O que o Ecoa fez foi sensibilizar o professor, mostrando que é importar valorizar e respeitar o que é diferente na comunidade, sem deixar de trabalhar o currículo que ele precisa”.
As próprias escolas das águas, a depender da comunidade, possuem perfis diferentes. Numa região de alta rotatividade docente, onde professores permanecem cerca de um ano, ou não se adaptam às condições locais, é importante reconhecer as especificidade da escola: “No rio Paraguai, a cultura é do ribeirinho e do pescador, e as crianças costumam ser um pouco mais tímidas, com menos espaço para correr. Já no Taquari é a cultura de pequeno produtor, do agricultor, então são crianças com espaço maior, que andam a cavalo. O educador tem que se reinventar em cada território.”
O trabalho do ECOA foca-se principalmente na formação do educador, preparando-o para os desafios dessas comunidades fluviais. Fazê-lo só é possível com o estreitamento das relação entre docente, estudante e território: “Um dos últimos projetos que fizemos em 2015 era uma pesquisa de campo em que os educadores trabalharam com os alunos para saber como eles viam a paisagem e o conhecimento tradicional de cada comunidade. Uma vai trabalhar com piranhas, outro artesanato de cabaça, outro a doma de cavalo. Isso se materializou em uma publicação disponível para que, a cada começo do ano, o professores tenham ideia do que os espera”.
Incorporar saberes e valores locais dentro do currículo escolar é também um desafio pelo papel que a escola cumpre em comunidades rurais. “Qual a visão da comunidade da escola? Como a maioria dos pais não é alfabetizada, para eles é muito importante que os filhos estejam na escola para aprender a ler, escrever e somar. É uma visão ainda bem conservadora, com uma comunidade que ainda se assusta quando as crianças estão aprendendo fora da sala de aula”, relata Patrícia.
O desafio de construir a autoestima dos saberes locais é grande. “Identificamos que eles dão muito mais valor ao saber científico do que ao saber deles próprios, sendo que as crianças sabem mais sobre a ciência da pesca e as meninas mais sobre as plantas medicinais do que muitos estudiosos”, complementa a pedagoga.
Patrícia percebe que, nesse estreitamento de laços entre a comunidade e docência, quando o educador conhece a comunidade, as famílias e a casa dos alunos, algumas facilitações ficam mais naturais dentro das práticas pedagógicas. “As culturas ribeirinhas começam a aparecer durante o ano letivo, e em diversas disciplinas, valorizando a cultura local.”
Texto publicado originalmente no Portal Aprendiz