27/10/2021
Texto publicado originalmente no Centro de Referências em Educação Integral
Após mais de um ano e meio de pandemia, com o agravamento das desigualdades sociais e das perdas de direitos no país, a desesperança tomou conta de várias escolas, educadores e famílias. Ao mesmo tempo, fazendo frente a esse cenário, despontam experiências educativas que mostram ser possível seguir em frente promovendo aprendizagens significativas e o desenvolvimento pleno das crianças, jovens e adultos.
Em comum, essas escolas promoveram a busca ativa, o acolhimento de toda a comunidade escolar, incorporaram experiências que crianças e estudantes tiveram durante a pandemia para impulsionar aprendizagens e passaram longe de discursos sobre “geração perdida” e “perdas irreparáveis” nas aprendizagens.
“Não existe perda irreparável no caso da aprendizagem. O que existe é um desenvolvimento humano que tem uma plasticidade e incrível capacidade de adaptação. Se a escola conversar com as famílias, vai entender as conquistas que tiveram no âmbito familiar e social”, explica Karina Rizek, consultora da Avante Educação e Mobilização Social, formadora da Escola de Educadores e uma das especialistas consultadas pelo Centro de Referências em Educação Integral sobre o tema para a reportagem “Faz sentido pensar em perdas irreparáveis na aprendizagem durante a pandemia?“.
Em entrevista a Natacha Costa, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz, Helena Singer, presidente da Ashoka, e Gina Vieira, professora na rede do Distrito Federal (DF), também analisaram em profundidade a origem e as consequências desse discurso. Assista à conversa na íntegra:
Abaixo, confira experiências, da educação infantil à de jovens e adultos, que estão valorizando e incorporando pedagogicamente as vivências da pandemia:
Na Creche Baroneza de Limeira, em São Paulo (SP), que atende presencialmente desde agosto de 2021 todas as 800 crianças de 0 a 5 anos, em um primeiro momento elas chegam sensíveis e assustadas e, aos poucos, desabrocham.
“É desafiador, exige muito empenho e é das entranhas, não dá para ser superficial, mas temos visto dar certo. Tinha um menino que tinha medo das crianças nas primeiras semanas e hoje mesmo ele estava sorrindo, abrindo os braços, descobrindo o quanto é bom estar com outro. Tiveram muitas crianças com uma evolução importante no desfralde, porque veem o colega e imitam. Tinha um outro menino de 3 anos que não andava e balbuciava só algumas palavras e agora sobe e desce escada e começou a falar. É algo que a escola realmente propicia”, relata a diretora da instituição, Ceila Pastório.
Mantendo contato permanente com as famílias das crianças desde o ano passado, os vínculos foram fortalecidos e agora têm apoiado o desenvolvimento das atividades, que priorizam formas de manifestar afetos, criatividade, as interações em grupo e valorizam o que as crianças aprenderam e gostaram de fazer durante a pandemia.
Assim, as educadoras promovem momentos para que os pequenos contem experiências que viveram nesse período ou aquela história que a avó inventou, que ajudem na horta da escola a partir dos conhecimentos que adquiriram cuidando do quintal de casa, ou as coisas que ajudaram a cozinhar e agora podem fazer para os colegas. “O conteúdo da infância é a própria vida bem vivida”, conta Ceila.
A creche também tem por cultura utilizar espaços abertos – a hora do lanche vira um piquenique na grama, a contação de histórias é feita embaixo das árvores e ao som de passarinhos, e nem a chuva estraga o momento. “Eles brincam com areia molhada, tiram o sapato e sentem a umidade e as poças d’água se tornam grandes experiências”, diz a diretora.
Na EMEF Infante Dom Henrique/Espaço de Bitita, em São Paulo (SP), as experiências têm sido parecidas: crianças que chegam às vezes sem saber manejar o lápis e, em pouco tempo, já começam a reconhecer palavras. “Elas sempre nos surpreendem”, diz Carlos Eduardo Fernandes Júnior, coordenador pedagógico da escola.
Para o trabalho de alfabetização, os educadores estão reorganizando os tempos para a experiência. “Tenho os estudantes que em cinco semanas deram um salto, e também tenho os que vão caminhar pouco em um ano e meio, mas vão caminhar”, explica o educador.
Para o 4º e 5º ano, o foco está em entender como as turmas estão concebendo a leitura, a escrita e as outras áreas do saber, como se identificam no território, observam e agem no meio. “As artes perpassam essa experiência o tempo inteiro, com as várias linguagens que nosso corpo carrega”, relata Carlos.
Já em relação aos adolescentes do Ensino Fundamental 2, o educador percebe que a questão da saúde mental é o que mais preocupa agora. “Eles foram muito abalados. Tenho muitos que não querem voltar para a escola, vários casos de automutilação, e tenho estudantes que querem ir o tempo todo, apesar do rodízio. Então é preciso conversar entre instituições para que a escola estadual que vai receber esse adolescente no ano que vem esteja mais sensibilizada, senão vai sobrar violência institucional”, alerta.
Pensando nisso, o coordenador pedagógico dividiu, tanto para o Fundamental 2 quanto para a Educação de Jovens e Adultos, o número de estudantes pelo número de professores e cada educador ficou responsável por acompanhar 16 estudantes acerca de aspectos como frequência, se está conseguindo organizar uma rotina de estudo, se em casa tem acesso remoto e equipamentos, bem como necessidades de primeira ordem, como moradia, saneamento básico e alimentação.
“Com base nesses relatos, abrimos os conselhos narrando para os demais professores o que sabemos sobre a vida desses estudantes para, então, olhar para o que ele está vivendo na escola. Mais do que saber onde eles estão de manhã, tarde e noite, é saber se ele tem um lugar onde dormir. Essa é nossa tentativa, mas ainda tenho 60 alunos evadidos e um bom número que não se mantém entre presencial e remoto”, diz Carlos.
Para esta etapa, a escola aposta na autonomia para os estudos e propõe roteiros de aprendizagem: materiais didáticos produzidos pelos professores com base no território educativo, como o rio que o atravessa, a relação com a imigração, a história da moradia de Carolina Maria de Jesus, o processo industrial e as fábricas de doce da região, e que dialogam com os componentes curriculares. “Também não avaliamos com provas, mas sondamos como o estudante está periodicamente, olhando para as experiências”, afirma o coordenador pedagógico.
A EMEF Infante Dom Henrique/Espaço de Bitita também atende a Educação de Jovens e Adultos. Para estes, o cenário foi diferente. “Eles tiveram que se manter procurando ter o que comer, então a pandemia foi muito diferente para a classe trabalhadora dos serviços essenciais do que foi para a classe média”, destaca Carlos Eduardo.
O trabalho pedagógico para esta etapa da escola é diferenciado devido à alta rotatividade dos estudantes que, em sua maioria, vem de centros de acolhida na região e com frequência migram para outros. Assim, os materiais são produzidos de forma a tentar atender a celeridade do rodízio de estudantes. Já em relação às avaliações, elas também levam em conta o contexto dos estudantes e se seus direitos básicos estão garantidos.
“Na EJA nosso foco é a relação com o território, mas temos que adequar bastante coisa ainda, porque muitos estudantes vêm de outros lugares da cidade, então aqui é um lugar transitório”, diz o coordenador pedagógico.
Já no CIEJA Perus, o investimento das ações têm sido na inclusão digital, uma vez que a maior parte da comunidade está em situação de alta vulnerabilidade social e, a eles, foi exigido o uso de aplicativos para acessar o programa de Auxílio Emergencial.
“Este foi principalmente um período de suporte às questões da manutenção da vida, de garantir acesso às políticas públicas. É isso que para eles tem sido quase irreparável, a ausência de direitos, porque são excluídos socialmente sistematicamente e, inclusive, das relações de trabalho, como nesse momento de alta do desemprego, porque se não tem Ensino Fundamental, eles já estão excluídos”, destaca Franciele Busico, diretora da instituição.
No trabalho pedagógico, as turmas também têm trabalhado questões de saúde, como a importância da vacinação, e o combate às notícias falsas, também conhecidas como fake news. “Nós vamos trabalhando como separar notícias verdadeiras das falsas, para que possam se informar melhor e não repassem desinformação nos grupos de whatsapp”, explica Franciele. Além das aulas, o CIEJA propõe plantões de dúvidas que podem ser agendados com os professores e oficinas diversas às sextas-feiras.