13/12/2023
Por: Ingrid Matuoka | Edição: Tory Helena | Fotos: Patrick Silva/Alma Preta
*Texto publicado originalmente no Centro de Referências em Educação Integral
Em junho deste ano, a EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo (SP), passou a se chamar Espaço de Bitita, após escolha do novo nome pelos estudantes e 8 anos de luta na Justiça. A movimentação sintetiza o objetivo central e diário da escola: combater o racismo e valorizar as diversidades.
Isso porque Henrique figura entre os heróis portugueses até hoje e, na história contada pelos europeus e seus descendentes, é retratado como corajoso e desbravador por sua atuação nas viagens colonialistas no Atlântico e no Norte da África.
A mesma história, em perspectiva afrocentrada, é bem diferente. Foi o trabalho de Henrique que organizou e ampliou toda a estrutura do extenso sistema de sequestro e escravização dos povos africanos pelos portugueses, como documentou a Universidade de Oxford.
Foi no território do Canindé que viveu por boa parte de sua vida uma das maiores escritoras brasileiras, Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), carinhosamente apelidada de Bitita por seu avô, a quem tanto amava.
Nas ruas onde hoje brincam os estudantes da escola que atende o Ensino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos (EJA), Carolina criou seus três filhos, trabalhou como catadora, escreveu vários livros, entre eles o célebre Quarto de Despejo (Editora Ática, 2019, 10ª edição) e, provavelmente, viu a escola ser construída, no final dos anos 50. Hoje, a autora pauta diversas práticas pedagógicas e nomeia o clube de leitura da unidade. Mais do que isso, é motivo de orgulho e inspiração para as crianças e famílias.
Ouvir outras vozes sobre uma mesma narrativa, derrubar um símbolo de violência e ressignificá-lo a partir do território, da cultura local e de suas pessoas. Esse é um dos movimentos que a Educação Decolonial provoca e que, na Espaço de Bitita, se expande para todas as suas dimensões.
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Por que estudantes sentados em carteiras e enfileirados? Para que serve a avaliação? Por que trabalhar este livro e não outro? Ao dialogar, levantar perguntas e construir respostas junto às crianças, suas famílias e o corpo docente, a escola se transformou.
Não há mais provas tradicionais, a configuração da turma na sala é em grupos e os estudantes aprendem por meio de roteiros de aprendizagem, que são materiais didáticos produzidos coletivamente pelas(os) professoras(es) com base no território, no desenvolvimento de cada um e nas múltiplas linguagens.
Por meio da tutoria, os professores ainda observam como vão as condições de vida objetiva e subjetiva de seus estudantes e, quando necessário, visitam a casa da família e acionam a rede de proteção social.
Toda a movimentação também pode ser definida como o que Bárbara Carine chama de “pedagogia da implosão” em sua obra Como ser um educador antirracista (Planeta, 2023):
“A perspectiva da inclusão perpassa pela concepção de que vamos colocar ‘o diferente’ para dentro, mas sem nos preocuparmos com a subjetividade desse outro, sem avaliarmos as estruturas já vigentes, se elas comportam e acolhem essa diversidade. O que estou chamando aqui de pedagogia da implosão destrói/implode o edifício brancocêntrico ocidental e constrói, a várias mãos, a nova festa da diversidade, cada um escolhendo seu par, sua vestimenta, sua comida, seu modo de dançar… uma verdadeira celebração da existência humana e de suas amplas potencialidades”.
Além de combater o racismo e a xenofobia e atender às leis 10.639/03 e 11.645/08, a escola viu o índice de exclusão escolar reduzir de 120 estudantes em 2021 para 15 em 2023. Também se tornou ponto de referência para garantia de direitos durante e após a pandemia e, assim, também um terreno de cultivo de paz dentro e fora de seus muros. Este último ponto se mostrou essencial para lidar com o medo que se espalhou diante dos ataques extremos contra outras escolas.
De mãos dadas, cantando e dançando, as(os) estudantes ocuparam a rua em frente à escola no Dia Internacional da Paz, celebrado em 21 de setembro. No centro, exibiram o Manto da Paz, feito de desenhos que representavam a paz para cada um deles, e fixaram o tecido na fachada da escola.
A atividade foi a culminância de uma série de conversas e ações em torno de compreender a cultura de paz enquanto justiça social. “Trabalhamos, por exemplo, o motivo do reggae, o ritmo mais conhecido por ser da paz, falar de luta o tempo todo. É preciso colocar o dedo na ferida para não ficarmos em discursos superficiais: não há paz sem luta por direitos”, defende a professora Juliana Cipriano, que leciona para os anos iniciais do Ensino Fundamental.
Por isso, o combate ao racismo é prioridade na escola. O tema está presente nas aulas, nos livros, no grupo de SLAM dos estudantes, nas rodas de conversa e formações docentes. Ainda assim, vez ou outra alguém o reproduz, mas em território de Bitita, não passa intacto.
“Ninguém aqui finge que não viu, que não ouviu. Ninguém aqui deixa passar. A gente intervém na hora, dialoga, se junta com outras professoras para pensar em outras ações. Mas não pode passar nada”, reforça Juliana.
Essa forma de atuação da escola nem sempre foi assim. Alguns anos atrás, a rica diversidade das(os) estudantes era ofuscada por violências, um desafio que se somava ao das salas superlotadas, evasão e falta de engajamento. “Isso foi lá por volta de 2014, quando as relações entre todo mundo aqui começaram a ficar insustentáveis”, relembra Gabriela Rauseo, coordenadora pedagógica na unidade.
A mudança começou por conversas com estudantes e suas famílias sobre convivência, respeito e acordos de conduta. Em pouco tempo, os professores começaram a mediar conflitos e criaram rodas de conversa sobre imigração, diversidade e cidadania.
As dependências da escola foram sinalizadas nos variados idiomas falados pela comunidade escolar. As crianças imigrantes e suas famílias, que hoje representam 37% dos 580 estudantes, passaram a compartilhar histórias, artes, comidas e músicas de seus países. Também começaram a dar aulas de Língua Portuguesa e outros idiomas para as famílias. O território, a cultura local e de cada família foram incorporados ao currículo, agora compartilhado com as(os) estudantes por meio de roteiros de aprendizagem.
No coral da escola, por exemplo, as crianças apresentam aos colegas músicas de que gostam em sua língua, estudam a letra, sua tradução e pesquisam mais sobre o/a artista e seu país de origem. Músicas indígenas, africanas e afro-brasileiras também integram o repertório.
“Cantar em um coral é um trabalho coletivo, então isso acaba ensinando as crianças a cooperar. Além disso, tem ajudado as(os) estudantes imigrantes a se enturmar e a falar Português, porque repetimos muitas vezes as palavras, então a pronúncia melhora”, relata Eodete Ferreira da Silva, professora da sala de leitura e do coral.
Pelo trabalho, a escola recebeu o Prêmio Heitor Villa-Lobos 2023, um dos vários que a unidade acumula, como o Prêmio Territórios Tomie Ohtake, Paulo Freire e Criativos da Escola. Além disso, também faz parte da Rede de Escolas Associadas da UNESCO.
Tais mudanças demandaram olhar para as(os) estudantes de forma mais próxima e humana, formação constante e coletiva das(os) professoras(es) e uma gestão parceira para apoiar nos desafios.
“Ao quebrar a lógica de blocos de alunos, você passa a abrir espaço para que eles se mostrem, inclusive fica mais fácil identificar dificuldades de aprendizagem. Mas também para construir uma relação de horizontalidade, em que os estudantes sabem que podem aprender com seu professor e com os colegas sobre temas interessantes e relevantes para a vida deles. Isso foi algo que minimizou muito a questão dos conflitos”, observa Gabriela.
O uso diário dos espaços abertos e naturais, o incentivo ao lúdico e à socialização, também contribuíram decisivamente. “Nos quartetos, as crianças se conhecem melhor, criam vínculo e sabem que precisam do colega para aprender e que têm algo a oferecer ao outro. Nos espaços lá fora, eles sabem que precisam compartilhar e que a convivência pode ser prazerosa”, aponta César Sampaio, assistente de direção da unidade.
Para promover a participação de todos, a escola também conta com dez Comitês de Estudantes, além do Grêmio Estudantil. Mediados por professoras(es), os comitês são grupos de estudantes voluntários responsáveis por elaborar ações para mudanças no cotidiano.
Há frentes de atuação como educação antirracista, diálogos sobre gênero, migração, cultura do movimento e lazer, festas e eventos e arte e cultura. “As próprias crianças colocaram possibilidades de atuação e se inscreveram”, conta Gabriela.
Na Educação de Jovens e Adultos (EJA), o fazer artesanal dessa Educação permanece. Por meio dos roteiros de aprendizagem, as(os) estudantes têm autonomia para conciliar os estudos com o trabalho e outras demandas da vida adulta.
“Organizamos uma lógica de estudos coletivos em que cada um pode se organizar de acordo com sua facilidade ou dificuldade, com sua disponibilidade de horário, e contando com o apoio dos professores”, explica César.
Valmirene Furtado de Freitas, 52 anos, é aluna do 7º ano e conta que voltou a estudar porque deseja ser perita criminal ou enfermeira. Quando criança, no interior do Maranhão, sua mãe decidiu tirá-la da escola porque nem sempre havia merenda.
“Gosto daqui porque eles nos escutam, veem as dificuldades que a gente tem, tem alimentação e às vezes ainda levo marmita para casa. São muito generosos e prestativos com a gente, gosto muito do diretor ao faxineiro. Se a gente falta, eles buscam saber o motivo. E os conteúdos são bons, falam de muitas coisas, racismo, preconceito, política, moradia – os nossos direitos”, diz Valmirene.
Em movimento contrário à tendência nacional, a escola tem aberto vagas e quase 25% dos estudantes são pessoas trans, público que tem buscado a unidade porque ali têm garantido o seu direito ao nome social e a utilizar o banheiro adequado.
“Houve resistência, mas colocamos o cartaz da legislação que permite que a pessoa possa usar o banheiro de acordo com o gênero com o qual se identifica e fazemos valer esse direito”, defende César.
Um dos estudantes da escola se mostrava constantemente agressivo com todos, faltava às aulas e sua aprendizagem estava comprometida. Em uma visita à família, a equipe descobriu uma situação de grave privação de direitos, um ciclo que relatam ser comum encontrar.
Desde então, foram dois anos de trabalho em conjunto com a rede de proteção social para garantir condições de permanência e aprendizagem na escola que mostram a importância de olhar para a raiz da questão, muito mais do que para seu sintoma.
“Semana passada ele se classificou para a segunda fase da Olimpíada de Matemática e a relação com os colegas e a professora é outra. São essas estratégias que lançamos mão e que transcende um pouco o papel da escola, mas que não tem como deixar de fazer”, diz Gabriela.
Durante a pandemia, a escola permaneceu aberta, arrecadou e distribuiu cestas básicas, e se fortaleceu enquanto pólo de articulação entre políticas para garantir direitos, algo que o entorno da escola pede em especial, mas que depende do fortalecimento das demais políticas, como a Assistência Social, Saúde e Moradia.
“A escola é rodeada por esses aparelhos sociais da prefeitura e tem os imigrantes que trabalham em situações bem complicadas. Tudo isso converge na escola, que merece e precisa de uma atenção especial da prefeitura”, alerta a professora Juliana.
Outra situação que também adentrou a escola este ano foram as repercussões dos ataques extremos a outras unidades. As famílias, justificadamente temerosas, foram à escola buscar garantia de segurança. Suas propostas reverberaram um dos discursos comuns: erguer os baixos muros da escola, colocar catracas, portões, quem sabe até policiais armados pelos corredores?
Para dialogar e construir soluções que não passassem por medidas repressivas, a escola organizou três turnos de rodas de conversa com as famílias ao longo de um dia. A saída pactuada foi a de fortalecer o pertencimento e a comunidade.
“Aqui a gente aprende todo dia e erra todo dia, também”, brinca o vice-diretor da escola. “Vamos tentando, porque o importante é sempre estar em movimento e nunca vai ter um dia em que nosso projeto vai estar acabado. A sociedade muda e aí a gente tem que mudar de novo”, diz César.