23/10/2023

Carlota Boto: “Não é suficiente que a escola se contente em ser digitalizada”

Como ficou nosso modelo de escola ao longo da pandemia e como ele se transmutará (ou não) no tempo pós-pandemia? Será que a escola que foi parar na tela digital reproduziu seus velhos hábitos ou trouxe uma atitude inventiva a partir dessas novas plataformas? Provocações como essas conduzem o livro Cultura digital e educação (Editora Contexto), organizado pela professora da Faculdade de Educação da USP, Carlota Boto.

De forma a refletir sobre como o formato da escola e das aulas foi impactado no período pandêmico, a obra reúne especialistas brasileiros e estrangeiros para discutir como a educação vem sendo desenvolvida no mundo contemporâneo. Em entrevista ao Movimento de Inovação na Educação, Carlota falou sobre os desafios e os caminhos apresentados pela cultura digital para a educação atual e como esses  foram multiplicados no momento em que a pandemia do coronavírus assolou o mundo inteiro. Confira:

Movimento de Inovação na Educação: É sabido como a pandemia impactou os processos de ensino-aprendizagem até então praticados pela escola e escancarou as desigualdades de acesso à conectividade no país. Passado esse momento, ainda que com pouco distanciamento histórico, quais foram os principais efeitos da pandemia na escola? Como isso vem se refletindo na educação praticada recentemente? 

Carlota Boto: A pandemia chegou sem avisar. O coronavírus impactou a escola. Impactou a escola porque os estudantes deixaram de ir para a escola. Impactou a escola porque, durante mais de um ano, os professores não tiveram a escola como seu território. E as aulas, quiséssemos nós ou não, passaram a ser a distância. Nesse sentido, cabe a pergunta: o que poderemos mobilizar dessa experiência para projetarmos futuras transformações da escola? Alguns já assinalam a perda de qualidade do ensino ministrado virtualmente, já apontam o risco de se transformar a educação presencial em ensino a distância, demonstrando preocupação quanto à reposição integral das aulas perdidas. Outros procuram visualizar qual é a potência do que vem acontecendo; ou seja, quais lições poderemos tirar desse tempo em que a escola não esteve à nossa frente…

Nesse sentido, valer-se de novas plataformas, utilizar novas estratégias, tudo isso requer ponderação na decisão e urgência na ação. As novas plataformas que abrem flanco para novos métodos de ensino levam a internet efetivamente para dentro da escola. Não se trata de conversão definitiva do ensino presencial a práticas virtuais. Trata-se de valer-se, neste momento particular, de recursos tecnológicos que são oportunos para projetarmos o futuro. Um futuro que não vai aderir ao ensino a distância. Mas um futuro que vai sim mobilizar de maneira inteligente as ferramentas e plataformas da internet.  Cabe aos educadores descobrirem como agir na urgência com inventividade, com coragem de criar o novo, com respeito às tradições e com atenção a todos os alunos.

MIE: A discussão sobre a expansão das tecnologias digitais na escola não é nova, mas com a pandemia se intensificou. No entanto, sabemos que a mera adesão à infraestrutura tecnológica não significa mudança na pedagogia. Como, de fato, as TICs vêm mudando as relações de ensino-aprendizagem?

CB: Hoje não podemos mais refletir sobre o significado de um ensino de qualidade sem ponderar sobre o uso inteligente em salas de aula das tecnologias digitais. Porém isso também impacta formas tradicionais de se lidar com o ato de ensinar. Nesse sentido, o livro que ora se apresenta traz elementos que nos permitem meditar sobre as diversas implicações da questão digital, tanto para a educação em escolas básicas quanto para o trabalho docente na universidade, o que contempla também a atividade da pesquisa. Como produzir o conhecimento nos tempos da internet? Como divulgar o conhecimento nos tempos da internet?

MIE: Qual a diferença entre uma escola alinhada à cultura digital e uma escola apenas digitalizada?

CB: Uma escola alinhada à cultura digital é aquela que explora as ferramentas da internet para inventar novas formas de ensinar e de socializar as crianças e os adolescentes. Trata-se de dominar o recurso técnico; jamais ser dominado por ele. Então, por exemplo, em uma aula de alfabetização, o trabalho com recursos digitais pode sim se constituir como uma estratégia válida para favorecer o letramento da criança. Para tanto, é preciso conhecer o mundo digital, conhecer a pedagogia e conhecer a matéria de ensino. Não é suficiente, portanto, que a escola se contente em ser digitalizada. Trata-se de uma atitude inventiva.

MIE: O livro também aponta que as pedagogias digitais afetaram a sociabilidade que a escola desenvolvia antes. De que maneira?

CB: O recém-publicado livro intitulado Cultura Digital e Educação tem por finalidade debater a confluência desses dois campos. Trata-se de averiguar os modos a partir dos quais a educação – sobretudo a educação escolar – vem sendo desenvolvida no mundo contemporâneo e interpelada pelos novos desafios que lhe são apresentados pela cultura digital; desafios esses multiplicados no momento em que a pandemia do Coronavírus assolou o mundo inteiro. A obra tem como público-alvo  professores de Educação Básica, assim como docentes e estudantes de cursos de Licenciaturas e Pedagogia. Acreditamos na urgência histórica de refletirmos sobre a nova situação vivenciada pela universidade e pela escolarização básica, sobre a pesquisa e sobre o ensino a partir das ações pedagógicas desenvolvidas durante o período de pandemia, considerando inclusive o que delas se manteve e o que deixou de fazer sentido após o fim desse ciclo. Propusemo-nos a investigar o que poderia ser mobilizado dessa experiência que, a dada altura, deixou, em todo o mundo, mais de um bilhão de crianças fora da escola. Sabe-se que as práticas de escolarização são tributárias do firmamento dos modernos estados nacionais. Mais do que isso, reconhece-se que a escola moderna, tal como ela se estruturou no Ocidente, deve-se fundamentalmente à expansão da cultura letrada, a partir do surgimento da tipografia. A escola moderna acompanha, portanto, a civilização do livro em códice, e constituiu, para tal finalidade, o que alguns autores têm caracterizado por “forma escolar”. Ora, se a forma escolar se estruturou com o livro impresso, como ficará o formato da escola no momento em que o códice for, ainda que parcialmente, substituído pela cultura digital?

MIE: Como a experiência da pandemia e a consequente inserção emergencial das tecnologias digitais na escola impactou e vem impactando a formação de professores (inicial e continuada)?

CB: A forma escolar articula sentidos e postula significados caros para a a formação das novas gerações de cidadãos republicanos. O desafio hoje apresentado ao campo da educação é o de investigar sobre como ficou nosso modelo de escola ao longo da pandemia e como ele se transmutará (ou não) no tempo pós-pandemia. As pedagogias digitais veiculam, talvez, novas formas – antes desconhecidas – de sociabilidade. Mas decerto não se trata da mesma sociabilidade que a escola desenvolvia antes. A expansão das tecnologias digitais tem – como se sabe – transformado inteiramente as sociedades. Quais seriam os efeitos, por exemplo, de se valer das redes sociais para finalidade pedagógica?  Será que a escola que foi parar na tela digital reproduziu seus velhos hábitos e rotinas? Reiterou seus usos e costumes? Reconhece-se que a dominação digital prevê obediência a regras e as relações de poder automatizadas continuam sendo assimétricas, ou seja, continuam sendo relações de poder.

MIE: A incorporação da tecnologia digital pela escola é sempre sinônimo de democratização do ensino? O que seria o  risco da dominação digital?

CB: O grande desafio que se coloca neste período de quase pós-pandemia para as escolas e também para as universidades é o de se meditar sobre o que vem a ser uma educação de qualidade. A escola é a instituição que se interpõe entre a vida familiar e a vida social. Ela prepara a criança, o adolescente e o jovem para que paulatinamente eles possam adentrar o mundo. Daí a importância concreta, material e simbólica que têm aqueles anos que constituem o período de passagem da pessoa pela escolarização. Mas o que é uma escola de qualidade? O primeiro sinal de qualidade de uma escola significa sua abrangência no sentido de receber parcelas diferentes de crianças, provenientes de todos os estratos da sociedade. Uma escola boa, sendo assim, é aquela que não recusa as crianças pobres ou difíceis. Por definição, portanto, uma escola boa tem de ser uma escola pública. Mas não basta ser pública para ter qualidade. Uma boa escola é aquela que é percebida por seus alunos como uma instituição justa, instigante e acolhedora. Mais do que isso, uma escola de qualidade é aquela que valoriza seus profissionais, que investe em seus profissionais, que possibilita que os professores e os técnicos da educação sejam os artífices do projeto político e pedagógico da escola. Uma escola boa é, ainda, uma escola que dialoga com os avanços científicos e tecnológicos de seu tempo. Daí a necessidade de tornar as ferramentas da internet efetivamente uma realidade da vida escolar.

É preciso – hoje, mais do que nunca – enfrentar, incorporando na sala de aula, as novas plataformas digitais do conhecimento. São inúmeros os desafios que a vida atual coloca para a escola. E ela precisa responder a isso. Porém, uma escola de qualidade é fundamentalmente a instituição que valoriza conteúdos clássicos do saber: é preciso conhecer os diversos campos das humanidades, é preciso conhecer  as ciências naturais, é imprescindível ter um domínio pleno da língua portuguesa e da linguagem matemática. As disciplinas constituem, no âmbito do conhecimento escolar, o legado da ciência e da história da cultura. Não há conhecimento que não passe pelo recorte disciplinar. É necessário saber história, geografia, física, química, filosofia, sociologia, biologia, inglês, espanhol, além de português e matemática. Até para haver interdisciplinaridade, é necessário que sejam conhecidas as disciplinas que se deseja conectar. Por fim, uma escola que fizer tudo isso conseguirá proporcionar um ensino sólido, crítico e criativo, que se move em um mundo comum, o qual, para ser transformado, precisa ser bem conhecido. A formação de professores, por sua vez, precisa interagir com a formação dos estudantes, de maneira a preparar as gerações jovens para esse lugar público de formação das crianças e dos adolescentes.

MIE: O que podemos mobilizar da experiência da pandemia para pensarmos futuras transformações da escola? Quais lições podemos tirar desse tempo em que a escola não estava à nossa frente?

CB: A história, com a pandemia, se acelerou. Ou foi paralisada. Não importa. As plataformas digitais que passaram a reger a vida escolar impuseram uma dinâmica toda sua aos rituais da escolarização. Mas a escola manteve sua condição de suspensão da vida cotidiana? O que a vida escolar deve fazer? Deve privilegiar os conteúdos curriculares já previstos ou deve adaptar seu currículo àquilo que vem acontecendo no momento atual? O tempo da pandemia foi um tempo de kairós. Foi uma história de um tempo presente, intenso e intensivo: um tempo do acontecimento. A metamorfose da escola passou decerto pelo tempo de kairós. Porém, com o declínio da pandemia, progressivamente atinge seu khronos.

 

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