15/03/2021
Por Helena Singer
Celebramos em 2021 cem anos do nascimento de Paulo Freire. O centenário do patrono da educação brasileira acontece em meio a uma pandemia que escancara a profunda crise dos valores, das práticas e das instituições democráticas, desrespeitados, ameaçados e, agora, abertamente questionados por grupos crescentes em vários países.
O Brasil é um destes países. Depois de três décadas de construção do arcabouço institucional da democracia, do sistema da garantia de direitos e de lento porém progressivo processo de inclusão social, temos agora um governo federal sustentado na ignorância e violência, um parlamento fisiológico, um judiciário arbitrário e uma elite econômica convicta em patrocinar tudo isso. Diante deste cenário, uma minoria contrária aos valores e processos democráticos ganha espaço enquanto a maioria se sente desmotivada a participar deste jogo político.
Ressalto deste contexto um problema que dominou boa parte dos países que foram governados no início deste século por forças progressistas: a tendência a localizar a dominação apenas no aspecto econômico, desprezando a dominação cultural e pedagógica. No caso específico do Brasil, este desprezo significou, ao contrário do que dizem os ultradireitistas que estão no poder, a ausência de políticas públicas mainstream orientadas pelas ideias e propostas de Paulo Freire.
Freire sistematizou sua metodologia de alfabetização de adultos com base em uma experiência muito bem-sucedida com cortadores de cana no Rio Grande do Norte no início dos anos 60. O método levava em consideração o contexto vivido pelos trabalhadores, seus desejos e reflexões. Os excelentes resultados alcançados motivaram a disseminação da proposta para todo o país. No entanto, em 1964, o golpe militar que tomou o poder central reprimiu o movimento e exilou Freire. Começa aí uma longa jornada do educador por vários países, o que possibilitou que suas ideias e seu método se disseminassem pelo mundo, como prática de movimentos sociais, principalmente aqueles liderados pela Igreja e pelas organizações estudantis, nos campos e nas cidades.
Com a reconquista da normalidade democrática no Brasil dos anos 80, renasceram os partidos políticos, sendo que os mais progressistas dialogavam fortemente com estes movimentos sociais. Foi assim que se conquistou a Constituição Cidadã de 1988 e, na mesma época, os partidos progressistas em suas matizes de centro a centro-esquerda chegaram a governos e prefeituras. Este é contexto em que o próprio Freire se torna secretário de educação na cidade de São Paulo, nomeado por Luísa Erundina, prefeita eleita pelo Partido dos Trabalhadores a partir de 1989. Na sequencia, a partir de 1995, os partidos progressistas alcançaram o poder executivo federal, primeiro em sua versão social-democrata de centro, depois em sua versão popular, mais à esquerda.
No entanto, na educação houve uma inegável linha de continuidade: programas menores de apoio à educação emancipadora conviveram de modo subalterno com políticas centrais orientadas pelos princípios do que Freire chamou de “educação bancária”: aquela baseada em uma relação vertical entre educador e educando, na qual o educador é o sujeito que detém o conhecimento, pensa, prescreve e “deposita” montantes deste conhecimento nos educandos. É esta a lógica predominante nas políticas baseadas em exames nacionais de desempenho de estudantes, que determinam currículos e práticas pedagógicas focadas em habilidades instrumentais – IDEB, Enem, Base Nacional Curricular como lista de itens etc. É a educação bancária que informa o discurso tão disseminado nos nossos dias sobre o “déficit de aprendizagem” que a pandemia tem provocado.
Concomitante ao abandono dos princípios da educação emancipadora pelos governos progressistas, parte dos movimentos sociais se desestruturaram e esvaziaram. Quem assumiu o seu lugar na interlocução com as comunidades foram as vertentes mais conservadoras das igrejas católicas e evangélicas que entram em choque com os movimentos que se fortalecem entre as novas gerações, como os ambientalista, anti-racista, anti-colonial, feminista, LGBTQ+.
Estes movimentos são tributários da educação emancipadora de Paulo Freire atualizada pela revolução tecnológica, que democratizou não só o acesso, mas a produção do conhecimento. Novas experiências pedagógicas se disseminaram pelo país dando continuidade às propostas e práticas da educação popular. Experiências de escolas e de organizações da sociedade civil voltadas para educação cultural, arte-educação, educomunicação, educação audiovisual, educação digital, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação para paz. Ao longo das primeiras duas décadas deste século, estas organizações se articularam em torno de encontros e redes que, em suas dinâmicas diversas acabaram por constituir um novo movimento por uma educação integral e transformadora.
O movimento inclui escolas, públicas e comunitárias, da Educação Infantil à Educação de Jovens e Adultos, passando pelas modalidades técnica e regular do Ensino Médio. Estão em territórios urbanos e rurais, criando cotidianamente caminhos para garantir a qualidade da educação nos centros e nas periferias das cidades, entre as comunidades agrícolas e nos territórios indígenas. Freire sempre soube que é na diversidade sociocultural do Brasil que se encontra a maior contribuição que este país pode oferecer para o avanço da democracia e da educação no mundo. Valorizando os saberes construídos com a experiência de séculos de resistência e de conquistas de povos indígenas, populações agrícolas, quilombolas, movimentos sociais urbanos e movimentos identitários estruturam-se projetos políticos pedagógicos que viabilizam valores, práticas e relações sociais democráticos.
São práticas pedagógicas onde se formam pessoas capazes de visualizar e lutar por um mundo mais justo e democrático. Este movimento constrói propostas e ferramentas que exigem respeito e empatia, praticam um novo projeto, capaz de mobilizar o desejo, a identificação e a produção de novos significados para a luta pela democracia.
A esperança radical de Paulo Freire não é ingênua ou inconsciente, mas sim crítica e mobilizadora em favor da transformação necessária e possível. É a esperança que recusa o fatalismo e assim transforma o presente. Que esta esperança oriente a reorganização das forças sociais e políticas para a conquista da tão necessária democracia efetivamente inclusiva, equitativa e voltada ao bem comum.