28/04/2020
Global, a pandemia do Covid-19 tem imposto uma ampla gama de desafios para todos nós. São desafios de ordem econômica e social, mas também pessoal. Temos sido impelidos todos os dias a recriar praticamente tudo para sobrevivermos a um tempo em que os meios que conhecemos já não podem operar.
Em um país desigual como o Brasil, estes desafios ganham contornos dramáticos. Com 52,5 milhões de pessoas (um quarto de sua população) ainda vivendo com menos de R$ 420,00 per capita por mês, este período de isolamento social com a consequente suspensão da atividade econômica e fragilização da rede de proteção social, produz efeitos gravíssimos para uma parcela significativa da população. E é nesse contexto que a educação pensada como direito deve atuar.
Fica evidente neste cenário a urgência de pensarmos a educação para além do processo de escolarização. Se, como nos ensinou John Dewey, “educação é processo, é desenvolvimento. Não é a preparação para a vida, mas a própria vida”, torna-se fundamental reconhecer com clareza o contexto em que estamos trabalhando como educadores para ampliar o alcance de nossa intervenção e minimizar os efeitos desta crise.
No entanto, como uma atividade essencialmente presencial, a educação se vê em um momento de muita pressão. Por toda a parte surgem soluções para o trabalho educacional remoto, mas a realidade é que gestores e professores ainda estão lidando com uma série de dúvidas, além de se verem exigidos a reorganizar o calendário escolar diante da imprevisibilidade em relação a duração e aos efeitos do isolamento social.
Diante de inúmeras indefinições, algumas medidas vêm sendo tomadas no sentido de estabelecer alguns, ainda que insuficientes, parâmetros às redes e escolas neste período. Entre elas, a Medida Provisória 934 do Governo Federal, o posicionamento do CNE e as resoluções dos Conselhos Estaduais autorizam, a partir da brecha da situação de emergência prevista na LDB, que sejam estruturadas nos próximos meses atividades não presenciais, inclusive no Ensino Fundamental, para cumprimento da carga horária prevista.
Claro que a ideia de manter, em alguma medida, os estudantes engajados em atividades propostas pelas escolas é desejável e relevante. Entretanto, é fundamental aprofundarmos coletivamente nossa reflexão a respeito dos objetivos que estas atividades não presenciais devem ter nesse momento, considerando todos os aspectos que impactam as redes, escolas, profissionais da educação, famílias e estudantes.
Primeiro, é importante entender que a indefinição completa em relação a evolução no tempo e alcance da epidemia gera incerteza e insegurança por parte de todos. A vida de gestores, professores, famílias e estudantes tem sido cotidianamente afetada de diferentes maneiras.
Além disso, segundo relatório do UNICEF, metade de nossas crianças e adolescentes (27 milhões) vivem sob múltiplas privações e, especialmente para eles, a escola é reconhecidamente fator de proteção. Nesse sentido, as condições de vida de milhões de estudantes apresentam diversas barreiras à implementação de propostas que dependam exclusivamente de suas famílias e espaços de moradia (educação domiciliar ou homeschooling).
Por fim, tendo em vista que a Constituição Federal prevê condições de igualdade no acesso a oferta educacional, é fundamental compreendermos as questões estruturais que afetam este direito. O guia Covid -19, Educação e Proteção de Crianças e adolescentes, elaborado pela Campanha Nacional pelo Direito a Educação em parceria com a plataforma Cada Criança, aponta que no Brasil 58% dos domicílios não têm acesso a computador e 33% não dispõem de internet. Além disso, relatos dão conta de que os profissionais da educação não se sentem preparados para propor atividades que prescindem da sua mediação e tampouco os pais e mães se sentem capazes para mediar processos de aprendizagem, mesmo nas camadas mais favorecidas economicamente.
Nesse contexto, o Centro de Referências em Educação Integral vem fazendo uma reflexão sobre como é possível estruturar respostas a esta crise que observem os princípios da Educação Integral na efetivação do direito à educação no Brasil durante e após este período. Estes princípios versam sobre quatro aspectos:
– Equidade: reconhecimento do direito de todos e todas de aprender e acessar oportunidades educativas diversificadas, a partir da interação com múltiplas linguagens, recursos, espaços, saberes e agentes.
– Inclusão: reconhecimento da singularidade e diversidade dos sujeitos, a partir da construção de projetos educativos pertinentes para todos e todas.
– Sustentabilidade: compromisso com processos educativos contextualizados, sustentáveis no tempo e no espaço e que integram permanentemente o que se aprende e o que se pratica.
– Contemporaneidade: compromisso com as demandas do século XXI, com foco na formação de sujeitos críticos, autônomos e responsáveis consigo mesmos e com o mundo.
É natural que se pense, em um primeiro momento, que se esses princípios são desafiadores em condições “normais” de temperatura e pressão, que dirá neste contexto. No entanto, se os tomarmos como princípios, há que sustentá-los quaisquer que sejam as condições. E a experiência tem mostrado que eles não apenas parametrizam nossas ações, mas iluminam caminhos que podem nos levar a transformações desejadas há bastante tempo.
Para nos debruçarmos sobre alguns dos caminhos que municípios brasileiros têm explorado em tempos de pandemia, é importante termos clareza de que a pergunta central deve ser: Como garantir que as políticas definidas neste período tenham em perspectiva os direitos de todas as crianças, adolescentes, jovens e adultos?
A partir dela, os demais aspectos se desenvolvem. São eles:
Neste exato momento, milhares de gestores e professores estão debruçados sobre a questão do calendário escolar. Se perguntam, sobretudo, como manter o currículo previsto. Sob quais parâmetros devem orientar a definição de hora aula, os instrumentos de acompanhamento de frequência e o processo avaliativo nesse período. Além disso, já se perguntam o que fazer na volta às aulas. Ideias como avaliações diagnósticas em larga escala e reforço escolar já começam a aparecer. No centro, como é comum, o conteúdo. Surgem também ideias de novos agrupamentos por proficiência. A ideia é correr atrás do “prejuízo”. No centro, claro, o conteúdo.
Os estudantes, os professores, sua relação com o mundo e com o conhecimento têm pouca atenção. Deixamos em segundo plano a experiência vivida por professores e estudantes neste período, as formas de acolhimento que serão necessárias, o fortalecimento da escola como espaço coletivo, as condições ainda mais adversas a que estudantes, famílias e comunidades possivelmente estiveram e seguirão expostos, as estratégias de engajamento dos estudantes na vida escolar, o reencantamento com o futuro pós-pandemia.
Tudo isso tem relação direta com a aprendizagem. Não se trata de outra coisa. Aprendizagem é uma ação que se dá na interação com o mundo, necessariamente mediada pelo outro, pela linguagem e pelo contexto social. Qualquer tentativa de isolar o processo de aprendizagem desses aspectos estará fadada ao fracasso. Assim, avaliações em larga escala, excessiva atenção aos conteúdos prescritos, procedimentos que buscam acelerar aprendizagens para responder a testes desconsiderando o contexto, não apenas são estratégias anacrônicas por não responderem às necessidades formativas do século XXI, como serão mais uma vez ineficazes na promoção da aprendizagem.
E é justamente por considerar essa multiplicidade de aspectos que a Educação Integral tem uma contribuição relevante a dar. Alguns municípios, à luz de seus estudos e políticas orientados pela Educação Integral, têm conseguido construir coletivamente boas estratégias para este momento. O mais relevante dessas propostas é que elas não apenas buscam responder aos desafios atuais impostos pela pandemia, mas guardam coerência com o trabalho feito até aqui e lançam as bases do trabalho pós-crise.
O município de Tremembé (SP), por exemplo, decidiu que nesse momento as famílias precisam contar com a presença das escolas, apoiando-as em diferentes aspectos da vida com seus filhos. E que é importante manter a conexão dos estudantes com o processo de aprendizagem. Para isso, a equipe técnica da secretaria entendeu que era necessário afirmar um novo paradigma: todo mundo ensina, todo mundo aprende e todo mundo é responsável. Para colocar esse lema em prática, foi elaborado de forma participativa com gestores, professores, em diálogo com as famílias e com as prioridades estabelecidas, o programa “Ninguém em Casa sem Aprender, porque famílias e escolas estão juntas!”.
A iniciativa apresenta nove estratégias: escuta das famílias, construção coletiva de atividades que possam ser desenvolvidas em casa, encontros semanais virtuais entre professores e familiares, desenvolvimento de plataforma moodle simples e acessível por celular para acesso às atividades e aos professores, criação de grupos de comunicação (WhatsApp) por turmas e ativação das páginas de Facebook das escolas, disponibilização de materiais impressos, mobilização dos saberes das famílias e comunidades, avaliação e acompanhamento via formulários online e cadastro das famílias no app do programa.
Para colocar as estratégias em ação foram criadas cinco frentes: Mobilização, Plano de Comunicação, Estudando em Casa, Troca de Saberes do Território e Famílias em Rede. Importante ressaltar que foi prioritário garantir que todos os estudantes estivessem contemplados no programa, por isso as estratégias foram desenhadas assegurando a busca ativa das famílias, o engajamento delas, a criação de conexões entre as famílias para garantir que as informações possam circular e o acompanhamento permanente e personalizado por parte dos professores.
Tarumã (SP), por sua vez, também se estruturou observando os princípios da Educação Integral. A primeira estratégia foi a busca ativa. Hoje Tarumã tem 100% dos pais e mães nos grupo de Whatsapp, são grupos por sala, e todos os professores estão em contato com as famílias. Os gestores e professores fazem um planejamento coletivo quinzenal por série e por área como foco em Português e Matemática e atividades voltadas para cultura, corpo, arte, etc.As atividades chegam via plataforma digital, mas também por Whatsapp e outras plataformas. São também impressas para todas as famílias que não têm acesso aos meios digitais. Além disso, eles têm procurado diversificar as linguagens para além dos textos: áudios, vídeos, jogos recreativos, fantoches, atendendo a preocupação de garantir minimamente um desenho universal para a aprendizagem. A partir daí os professores fazem um acompanhamento personalizado com as famílias e estudantes.
As famílias são vistas como grandes aliadas e as atividades são planejadas a partir de recursos que existem nas casas, reconhecendo os saberes das comunidades e fortalecendo as relações comunitárias. Além disso, há uma perspectiva intersetorial. Os agentes de saúde têm ajudado que alguns materiais cheguem às famílias que vivem em lugares mais distantes ou inacessíveis aos professores. E este é apenas um exemplo.
Manaus (AM), como a terceira maior rede de educação básica do Brasil, tem o desafio de promover estratégias em uma escala bastante complexa em número de estudantes e em diversidade de regiões e contextos socioeconômicos (urbana, rural e ribeirinha). Com experiências de escolas que são referência em Educação Integral no país, premiadas nacional e internacionalmente, e um trabalho de anos voltado para a discussão e implementação de políticas orientadas por esta concepção, a secretaria tem procurado também engajar as famílias e construir propostas pedagógicas adequadas às diferentes faixas etárias, lançando mão de recursos que possam chegar a todos os estudantes.
Para isso tem veiculado os conteúdos pela televisão e redes sociais para o Ensino Fundamental e pequenos vídeos que apoiem os responsáveis pelas crianças da Educação Infantil. Há também a disponibilização de atividades para as famílias que não têm acesso a internet. O conteúdo é produzido pelos professores da rede e se preocupa em estimular a interação com as famílias e estudantes. Além disso, após a veiculação das atividades, os professores atuam com orientações às famílias via grupos de WhatsApp e SMS.
Podemos dizer que estas propostas têm em comum o compromisso em construir estratégias contextualizadas que atendam a todos os estudantes. Sem exceção.
Os principais aspectos dessas propostas podem ser sistematizados da seguinte forma:
Essas premissas e estratégias constituem os pilares da Educação Integral em qualquer contexto. E é justamente neste momento que elas revelam sua relevância e enorme contribuição para a efetivação do direito à educação no país.
Tem sido uma luta grande no Brasil afirmar a necessidade de ampliarmos a lente sobre o processo educacional garantindo qualidade pedagógica às políticas públicas. A equação “currículo prescrito – avaliações externas – formação de professores – materiais didáticos padronizados” não será capaz de garantir uma educação de qualidade para todos os brasileiros.
É preciso apostar nos professores como profissionais, na construção de currículos vivos que sejam resultado do trabalho coletivo das redes e orientem todas as escolas, sendo apropriados por cada uma a partir de sua realidade, dos desafios, potenciais e saberes das comunidades e estudantes, em um processo de formação que os reconhece como sujeitos multidimensionais, sociais, históricos e, sobretudo, competentes. Sujeitos capazes de produzir conhecimento a partir da mediação da escola na sua relação com o mundo.
Tremembé, Tarumã e Manaus têm sido capazes de, tão rapidamente, propor políticas sistêmicas, pactuadas coletivamente e que cheguem a todos os estudantes porque vêm zelando, não é de hoje, por esses princípios em suas políticas curriculares, de avaliação e monitoramento e de formação de professores.
Nos mais diferentes campos, filósofos, economistas, ambientalistas, sanitaristas, cientistas e tantos outros profissionais vem afirmando que o Coronavírus mudará nossas vidas de forma irremediável. De fato, os limites impostos por esta nova realidade têm nos apresentado possibilidades inegáveis de transformação.
Que possamos diante disso escapar às armadilhas que nos levam a repetir fórmulas fracassadas, que despersonalizam os processos educativos, que massificam e padronizam uma atividade que depende inexoravelmente de vínculo e pertinência. Que possamos, no lugar disso, ressignificar o papel de nossas escolas colocando o processo educativo à serviço da vida. Isso sim garantirá o aprendizado de todos e todas. E nos levará à formação de pessoas capazes de nos conduzir a uma nova era, tão necessária não apenas à dignidade humana, mas à sua própria sobrevivência.
Natacha Costa é diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz. Natacha compôs o Grupo de Trabalho nacional que formulou o Programa Mais Educação do governo federal e o Grupo de Trabalho Nacional da Iniciativa pela Inovação e Criatividade na Educação Básica do Ministério da Educação. Atualmente é membro do Conselho Estratégico Universidade-Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Comitê Nacional para a Busca Ativa Escolar do UNICEF e do Movimento de Inovação na Educação. Além disso, faz parte do Programa Líderes Transformadores da Educação da Fundação SM, compõe a comunidade ativadora do Programa Escolas Transformadoras e o conselho consultivo do programa Escolas 2030 no Brasil.
Texto publicado originalmente no Centro de Referências em Educação Integral