04/02/2022

Lar das Crianças recebe a Associação Janusz Korczak Brasil na sua semana pedagógica

Por Denis Plapler*

Na semana passada, justo no dia internacional em memória a Shoa, o Holocausto nazista (1933 – 1945), a Associacao Janusz Korczak Brasil recebeu um convite especial, para participar de um dia da semana pedagógica do Lar das Crianças, uma organização educativa sem fins lucrativos, fundado em 1937, pertencente a Congregação Israelita Paulista, que busca através da educação oferecer oportunidades de desenvolvimento para 460 crianças e jovens a partir dos quatro anos até o encaminhamento profissional, um trabalho voltado especialmente para famílias em situação de vulnerabilidade social, na periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Ética, cooperação, respeito, compromisso, equidade, alteridade, diálogo, protagonismo e inovação são os valores difundidos pela instituição que aposta no conhecimento como instrumento de transformação social.

Que alegria podermos voltar a encontrar as pessoas de verdade, pessoalmente, no mesmo espaço físico, satisfação em substituir gradativamente o sentimento do medo do outro pela alegria do encontro, voltar a olhar olho no olho, algo tão básico e da essência do processo educativo, ainda que de forma menos expressiva com o uso preventivo das máscaras. Além da minha participação presencial para conversar com a equipe do Lar das Crianças, neste dia contamos também com a participação da psicóloga e vice-presidente da AJKB, Tania Novinsky, à distância, de modo digital.

Curiosamente Lar das Crianças foi justamente o mesmo nome do orfanato que começou a funcionar na Rua Krochmalna, número 92, a partir de 1912, quando Janusz Korczak assumiu a direção ao lado de Stefania Wilczynska, na antiga cidade de Varsóvia, na Polônia. Gradualmente, em conjunto com as crianças e adolescentes, transformaram o Lar em uma verdadeira república das crianças, com uma educação democrática e inovadora dentro dos princípios da justiça, da fraternidade, da igualdade de direitos e obrigações. Ali o trabalho de Janusz Korczak como médico passou a assumir também a função de educador. Em seu livro Como amar uma criança, ele relata este marco:

Como médico, constato sintomas: vejo uma erupção da pele, escuto a tosse, sinto o aumento do calor do corpo; com a ajuda do olfato, percebo o odor da acetona na boca da criança. Certos sintomas são perfeitamente visíveis; outros, escondidos, pedem um exame mais acurado. Como educador, também constato sintomas: um sorriso, o riso, um rosto enrubescido, lágrimas, um bocejo, um grito, um suspiro. Como médico, devo reconhecer uma tosse seca, cheia, ou aquela que vem de uma irritação na garganta; como educador, preciso saber que existem vários tipos de choro: lágrimas, soluços, mas também aqueles que se expressam pelos olhos, choros interiores. 

KORCZAK, 1997, p. 246

A proposta da visita da AJKP à semana pedagógica do Lar das Crianças foi uma roda de conversa para aprofundar a reflexão sobre a nossa prática e a educação que sonhamos. O dia dedicado à formação teve como base a leitura prévia de dois textos, Janusz Korczak, Precursor dos Direitos das Crianças, do professor Moacir Gadotti e Dispositivos Pedagógicos em Janusz Korczak, da pesquisadora Mauren Lúcia Tezzari. A partir destas leituras pudemos conversar sobre o trabalho realizado pela equipe do Lar das Crianças de São Paulo e as possíveis contribuições de Janusz Korczak para pensarmos a educação na contemporaneidade. Nossa conversa girou muito também em torno das experiências das assembleias escolares.

O artigo de Tezzari além de ser uma das raras produções pedagógicas na língua portuguesa sobre Janusz Korczak, um dos maiores nomes da História da Pedagogia, contribui muito para aqueles que buscam aprofundar a suas reflexões sobre a prática pedagógica. Os dispositivos utilizados por Korczak, destacados no texto, foram profundamente sofisticados e se relacionam com muitas escolas que buscam inovar ainda hoje. Em sua obra Como amar uma criança, Janusz Korczak conta como no Lar, em Varsóvia, as crianças eram responsáveis por todas as tarefas no cotidiano e, com o tempo, diversos dispositivos foram criados em conjunto com eles com o objetivo de promover uma educação para autonomia, de pensar, sentir e agir, com a liberdade vinculada de modo profundo e indissociável da responsabilidade, o que também proporcionava, conforme as convicções de Korczak, mais alegria e satisfação para as crianças e adolescentes.

Em seu artigo Tezzani destaca a importância das relações horizontais que rompiam com a hierarquia na gestão do Lar já naquela época, e traz em destaque o comentário de Janusz Korczak sobre o tema, descrito em seu próprio diário enquanto estava já no Gueto:

Luto para que não se faça mais diferença entre trabalhos delicados e grosseiros, inteligentes e estúpidos, limpos e sujos; entre trabalhos para mocinhas de boa família e aqueles que são apenas bons para o povo. Não deve haver no Orfanato ocupações exclusivamente físicas ou exclusivamente intelectuais (…) Respeito os trabalhadores honestos. As suas mãos são, para mim, sempre limpas e faço muita questão de suas opiniões. 

KORCZAK, 1986, p.122-123

A horizontalidade é uma das principais questões vinculadas à pedagogia korczakiana, uma vez que na metade do século XX, em um contexto já de extremo anstissemitismo as vésperas da ascensão nazista na Europa, um homem médico se propõe a compartilhar a sua autoridade com as crianças marginalizadas na antiga Varsóvia, para construir com elas coletivamente uma outra educação, uma outra realidade possível, colocando a horizontalidade dialógica na prática, a serviço da construção coletiva, expondo os conflitos para conversar, com a busca da justica permanente, resistindo as imposições autoritárias e violentas das relações hierárquicas e de exploração que dominam a sociedade ocidental historicamente e oferecendo a estes jovens a possibilidade de criar sentido e compreensão sobre o seu próprio processo educativo, devolvendo a eles o direito à dignidade, à integridade, ao respeito.

O artigo de Tezzani também destaca os diferentes sofisticados dispositivos pedagógicos praticados ao longo dos anos no Lar das Crianças de Varsóvia: A Caixa de Cartas, o Comitê de Tutela, Reuniões Debates, o Jornal, o Tribunal, o Plebiscito, assim como possíveis contribuições para uma educação mais inclusiva. Dispositivos extremamente sofisticados e abertos a constantes reformulações. Quando Janusz fala sobre a importância da construção destes dispositivos afirma como foram fundamentais para todos, tanto para as crianças como para ele, pois garantiam maiores cuidados com as relações e os conflitos inerentes aos processos educativos acima da fragilidade suscetível ao temperamento momentâneo do melhor dos educadores:

Afirmo que esses processos foram a pedra angular da minha própria educação. Fizeram de mim um educador “constitucional” que não maltrata as crianças, não porque goste delas ou lhes tem afeição, mas porque existe uma instituição que as protege contra a ilegalidade, o arbítrio e o despotismo do educador.

KORCZAK, 1997, p 380

Entretanto, diferente do que aparece publicado no artigo da pesquisadora, a opção de Korczak pela autogestão, assim como toda a sua prática relatada ao longo de sua obra, apresenta a sua convicção de que esta era a melhor forma de educar aquelas crianças, jamais uma prática por falta de recursos ou funcionários, pelo contrário, tanto em Varsóvia, como nesta linda experiência brasileira, havia recursos para um trabalho de excelência. Outro ponto crítico do importante artigo de Tezzari é o de que Korczak não pensava a educação centrada na criança, como escreveu a pesquisadora, mas nas relações, como o próprio Korczak escreveu ao falar sobre as inadequações de uma educação que transforma a criança em um pequeno tirano:

Devemos então permitir à criança que faça tudo o que quiser? Nunca: nos arriscamos a transformar um escravo que se aborrecia num tirano que se aborrece. Proibindo-lhe certas coisas nos permitimos que sua vontade se exerça, mesmo que seja apenas no sentido de autodisciplina, de renúncia; reduzindo seu campo de ação, encorajamos seu espírito inventivo, despertamos o espírito crítico, a faculdade de escapar a um controle abusivo. Isso vale alguma coisa no sentido de preparação para a vida. Enquanto com uma tolerância excessiva “em que tudo é permitido”, onde o menor desejo é satisfeito, arriscamos, ao contrário, sufocar a vontade. Se no primeiro caso nós enfraquecemos a criança, no segundo a intoxicamos. 

KORCZAK,1997, p. 74

O movimento da escola nova, ou a nova educação, não defende transferir para a criança a autoridade antes centrada no professor, suposto detentor de todo o saber e poder, mas buscar pensar e construir uma educação centrada nas relações, entre as crianças e seus pares, entre os adultos, entre os adultos e as crianças, entre as pessoas e o meio ambiente, ao longo do processo educativo, compartilhando com todos a autoridade reconhecemos o saber, a legitimidade, o respeito, o direito e o poder de todos a participar, a possuir voz e escuta, construímos assim espaços de saúde, não de adoecimento, nos quais a autoridade está centrada nas relações e na palavra e é através da aposta na aprendizagem do uso adequado da palavra que poderemos produzir o nosso melhor, a inteligência coletiva para um mundo mais ecológico, democrático, comunitário, ético, com a palavra a criança se expressa como criança, o educador se expressa como educador, cada pessoa coloca-se a partir do papel que desempenha socialmente, para construção de uma sociedade na qual é possível estabelecer relações não hierárquicas, mas horizontais e dialógicas.

Ao longo da nossa conversa em roda deste dia formativo pudemos refletir sobre diversos temas relativos à nossa prática educativa a partir de uma visão humanizadora das relações e da educação. Neste dia tive o privilégio de conhecer pessoas de verdade, educadores como a Nicole, a Bruna, o Edi,  toda uma equipe muito sensível, qualificada e disposta a trocar um pouco a respeito das nossas caminhadas.

semana pedagógica

A primeira assembleia escolar do Lar das Crianças, de São Paulo, em 2022

No segundo texto tomado como base para conversa proposta, o autor e professor Moacir Gadotti reconhece Janusz Korczak como precursor dos Direitos das Crianças, pela influência de sua vida e obra sobre a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, um texto lindo e histórico, proclamado pela Organização das Nações Unidas, em 1959, influenciada principalmente pelo livro O Direito da Criança ao Respeito, de Janusz Korczak, no Brasil traduzido em conjunto com um texto do grande jurista e ex-presidente da AJKB, Dalmo Abreu Dallari, escritor também do nosso Estatuto da Criança e do Adolescente. Gadotti destaca em seu artigo a autonomia de pensamento de Korczak ao defender em sua obra o amor como prática pedagógica, vinculado a uma concepção de educação pensada e praticada para autonomia,  destaca a seriedade com que a pedagogia de Korczak tratava os conflitos, sem escamoteá-los, dentro de uma visão de mundo coletiva:

Ela [a criança] tem o direito de exigir que seus problemas sejam tratados com imparcialidade e seriedade. Até agora tudo dependia da boa ou má vontade do educador, do seu humor naquele dia. Realmente é tempo de pôr fim a esse despotismo.

KORCZAK,1997, p.332

Nestes tempos nos quais a verdade se torna obscena se faz necessário destacarmos experiências pedagógicas que se empenham de verdade por humanizar as relações, assim como observar referências comprometidas seriamente com os direitos das crianças e adolescentes de fato na prática, para que a educação não seja sequestrada por interesses econômicos e a inovação se torne refém do mundo corporativo ou de supostos gurus, vendedores de pobres manuais didáticos que buscam reduzir a vida a reprodução de suas próprias experiências, tornando a  inovação pedagógica refém da desonestidade, da ganância, da vontade de poder, da competição e do individualismo, pois enquanto algumas pessoas destroem equipes e escolas e discursam mentiras vazias por aí, outros seguem buscando manter vivos os projetos de vida dos estudantes como podem, cientes de que a verdade reverbera seus sintomas em nossos corpos.

A Associação Janusz Korczak Brasil oferece, como parte de seu trabalho, a possibilidade de consultoria, assessoria e supervisão pedagógica, assim como cursos e momentos formativos para organizações educativas escolares e não escolares, públicas, privadas e do terceiro setor, com a finalidade de fortalecer princípios e valores como a liberdade, a ecologia, a democracia, a justiça social, os direitos das crianças e adolescentes, vinculados sempre a uma pedagogia de construções dialógicas, horizontais e coletivas. Misturamos em nossa panela Democracia Direta, Permacultura, Cultura Circular e Economia Solidária, havendo interesse em nosso trabalho basta entrar em contato conosco, www.ajkb.org.

*Denis Plapler é presidente da Associação Janusz Korczak Brasil

 

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