06/08/2021
Por José Pacheco
Mogi das Cruzes, 4 de agosto de 2041
Queridos netos,
Raros serão os seres humanos que entendam a sutil sapiência dos pássaros, mas eu sei que vós compreendereis a “lição”. Sei que o vosso pai vos ensinou a escolher caminhos. Imagino que os vossos caminhos se hão-de cruzar com outros caminhos, com ou sem rotas definidas. Sei que não estais condicionados por sentidos obrigatórios e que sabereis inventar e reinventar venturosos mapas, respeitando os que optarem por inventar os seus.
O mais certo será que, nas vossas deambulações, vejais passar pequenos gansos recém-saídos do ovo, seguindo um homem como se fosse o pai-ganso. Um sábio chamado Lorenz fez essa experiência e a Etologia diz-nos haver pássaros que seguem o bando que lhes trouxer maiores vantagens, ou que mudam de rumo, ao sabor das aragens.
Sempre que eu subia ao chão da escola, ao encontro de éticos e amorosos educadores, deparava com lamentos como estes:
“Sou professor substituto. Não sei se poderei continuar neste projeto”.
“Não sou concursado. No próximo ano, certamente, já estarei em outra escola”.
Nos anos que se seguiram ao teu nascimento, os vossos pais não tinham poiso certo. Ano após ano, viviam a incerteza da “colocação”. E muitos projetos se perderam só porque, por via de “concursos” e “colocações”, lhes faltou o humano que os concretizasse.
“Colocação” era o final feliz de uma angustiada espera. A “colocação” dava aos vossos pais a certeza de que, pelo menos durante um ano, poderiam fazer o que gostavam de fazer. E era também nessa diária aventura de ensinar a aprender que os vossos pais amealhavam o seu sustento e asseguravam o vosso futuro.
“Concurso” era um estranho jogo, um jogo de acasos, que os professores eram obrigados a jogar naquele tempo. O “concurso” era impiedoso e, no final de cada “ano letivo”, impunha a violência da separação àqueles que se começavam a conhecer e a compreender. O “concurso” era cego, pouco se importava com os afetos e nada entendia de criar laços.
“Ano letivo” era uma estranha divisão do tempo. No Brasil, ia de fevereiro a meados de dezembro, com “recessos” pelo meio. Em Portugal, durava de setembro a junho, obrigando os professores a se aglomerarem nas praias e a fazerem fila nos restaurantes, entre julho e agosto.
Era certo e sabido que nada se aprendia na escola de aula de cinquenta minutos, nos intervalos de todos fazerem xixi, ao mesmo tempo, e em duzentos “dias letivos” – por que não trezentos e sessenta e cinco dias? Sem qualquer explicação plausível para a sua existência, o “ano letivo” sugeria que a inteligência das crianças deixasse de funcionar em dezembro e só voltasse a funcionar depois do Carnaval. Estranho era que os seguidores dessa paradoxal subdivisão do tempo se levassem a sério.
Os vossos pais conheceram-se, amaram-se e quiseram que viésseis ao mundo num tempo incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor como nas de aprender e ensinar, o que é urgente não deve esperar. Impedidos de concretizar o sonho de fazerem as crianças mais felizes, afastados daqueles que aprenderam a amar, os vossos pais mudavam de casa, ano após ano. Dentro da casa, levavam o vosso berço para longe das paragens habitadas pelos vossos avós.
Sabemos bem das nefastas consequências de afastar avós dos netos, mas era isso que acontecia nesses recuados tempos. Só por isso, não pude estar junto de vós, para vos contar o mundo pelo caminho dos bosques e palácios de sonho habitados por duendes e príncipes encantados. E vós não pudestes ensinar-me a gramática de tempos que serão vossos e que, certamente, já não poderei ver.