17/01/2022
Por José Pacheco
Luz de Tavira, 24 de dezembro de 2041
Como vos disse na cartinha de ontem, tenho passado os últimos dias garimpando. É atributo dos velhos guardar tudo o que pode, mesmo sem saber se, algum dia, lhe dará serventia. No meu caso, o que me move não é acumular inutilidades. Sei que estou velho, mas alguma lucidez me impele a revelar “manifestos” de extraordinários educadores. De alguns, vivos e ativos; de outros, que perdi na pandemia dos idos de vinte, como o Almir, que faleceu nas antevésperas do Natal – e eu ainda não me tinha refeito da partida do amigo Cortez.
Dou por mim a recordar as idas a Pocinhos do Rio Verde, na companhia do amigo Rubem. Subindo a encosta do sítio, ele me apresentava as árvores, uma a uma. O Rubem plantara árvores em memória de amigos, que haviam “partido antes do combinado” (como dia o Boldrin). O Rubem colocava poesia em tudo o que escrevia e fazia. Prodigamente, erotizava Tanatos, transmutava tristeza em renascimento.
Ontem, encontrei uns papéis escritos pelo Rubem, à mistura com um monte de cd rom. Já ninguém fabrica aparelhos que permitiam reproduzir o seu conteúdo. Só um velhíssimo laptop me revela depoimentos contidos em pen drive. Numa delas, achei uma das crônicas que a minha amiga Tina publicou nos idos de vinte:
“Grandes estudos sobre evasão, apontam um fator em comum: a ausência de interesse pela escola. Desconfio que estes estudos foram feitos por “fazedores de educação”, pois eles não apontavam perspectivas diferentes, como: escolas desinteressantes, metodologias ineficazes, conteúdos sem sentido, padronizações robotizadoras, cobranças irreais etc.
A escola abandonou essas crianças muito antes delas abandonarem a escola. Antes do corpo evadir, o coração e mente já tinham evadido, e ninguém percebeu?
Uma escola que, desde muito cedo, reprime a curiosidade e criatividade das crianças com padronizações absurdas, excludente, competitiva, que desdenha dos diferentes, com volumes enormes de conteúdos fragmentados e desconexos da vida real, com regime autoritário e humilhante, onde os alunos só podem escutar, obedecer e reproduzir, que gera frustração, baixa autoestima e sentimento de inadequação, a evasão acaba sendo uma válvula de escape para alguns.
Encontrei alguns registros de programas para combater a evasão e a maioria atuava com troca – “mande seu filho para a escola e ganhe uma cesta básica”, “R$ 100,00 para estudantes com frequência mínima de 80%”. Eu fico imaginando o corpo contrariado do estudante na escola e o cérebro voando em qualquer outro lugar.
Enquanto a escola for uma fábrica de matar sonhos em linha de montagem, qualquer ação contra evasão será em vão.
É preciso resgatar corações e mentes… os corpos virão juntos.”
Era “barra pesada” a partida dos corpos, levados pela pandemia. Apresentava-se difícil resgatar os corações e as mentes dos sobreviventes. E eu me agarrava à leitura das narrativas de velhos companheiros: do Tuck, do Celso, da Lívia, do André, da Cecília, da Natália, do Luca, da Kátia, da Patrícia, do Pedro, do Helder e de outros, que faziam parte da minha família E, sempre que era chegada a “festa da família”, à saudade que me assaltava se juntava um sentimento de gratidão, de que era devedor a essa plêiade de excepcionais educadores, que ajudavam a fazer o Natal da Educação.
Nesse dezembro, alguns desses amigos compuseram e me enviaram uma “árvore de Natal” feita de fotos de alguns insignes educadores brasileiros. Ousaram colocar-me na base da árvore. Grato, presumi que quisessem referir-se a mim, não como raiz, mas como um orgânico húmus. E agradeci.