19/05/2021
Por José Pacheco
Tavira, 7 de maio de 2041
Quando, nos idos de setenta e oitenta, os visitantes da Escola da Ponte teciam elogios ao projeto e me perguntavam como me sentia, ou o que eu era, respondia ser um trabalhador da educação, mais um membro de uma equipe, ao serviço de um projeto, que uma comunidade adotara.
Nos anos setenta foi decisiva a ajuda recebida de outros trabalhadores da educação, companheiros do Movimento da Escola Moderna, amigos de longa data, militantes de novas pedagogias, com quem muito aprendi.
Ainda no tempo da ditadura, fui à procura da Angélica. Ouvira falar da sua turma freinetiana – algo raro naqueles tenebrosos tempos – e percursora do Movimento da Escola Moderna. Ainda recordo o modo com a descrevi no livrinho “Para Alice, com amor”:
“Conheci uma gentil gaivota de nome Angélica. Nem precisaria de tal nome, para sabermos que o era. Juro que não inventei o nome, apesar de humanos mais céticos poderem pensar que minto. São lugares de verdade, são seres verdadeiros aqueles de que te venho narrando feitos e peripécias. Tu sabes bem que os seres e os nomes são o que nós quisermos que sejam. Tu sabes que não é por acaso que haverá acasos e que as coisas se vão entrelaçando e tomando forma, fazendo sentido, e acreditas que ser angélica, no presente caso, não é ficção. Existiu. E foi como um anjo da guarda das iluminuras.
A provecta idade da gaivota Angélica há muito a afastara do ensinar aprendendo, já não lhe consentia o voar errante de outros tempos. Mas acolhia numa espécie de tálamo de experiência e bondade jovens gaivotas indefesas perante as arremetidas de avestruzes que, possuindo asas, ignoravam a sua utilidade. Até ao fim dos seus dias nesta terra dos homens e dos pássaros, Angélica contagiava as jovens gaivotas ensinantes com o seu solidário saber experiencial, apaziguando angústias, conferindo-lhes alento para defrontar os perigos.”
Um amigo, que se exilara na França, clandestinamente visitou a nossa pátria e me entregou dois livros, que devorei, avidamente. Ansiava conhecer a proposta do Celestin da Elise Freinet. E, na Escola do Carmo do início da década de setenta, atrevi-me a ser, também, freinetiano.
Após a Revolução dos Cravos, fui escutar o Sérgio e acompanhei a implantação do M.E.M. Sempre criticamente, confesso, porque eu já não estava sozinho, nem numa sala de aula. No final da década de oitenta, fui para a França, conversar com discípulos do Celestin, da Elise, do Fernand e da Aida. Foi por essa altura que eclodiu a minha segunda crise profissional. A praxeologia desses insignes mestres de chão de escola tinha sido apropriada pela academia instrucionista. Virara teoria cristalizada travestida em teses.
Se, no decurso de um projeto, as crianças pesquisavam e recolhiam informação sobre o Renascimento, deparavam com a figura de Gutemberg, e eu os convidava para usar a imprensa Freinet. Os primeiros jornais escolares nela foram produzidos.
À entrada da década de noventa, a Web semântica permitia que os seres humanos trabalhassem em cooperação. Por essa altura, companheiros do M.E.M. nos visitaram e me perguntaram onde estava a “Imprensa Freinet”. Disse-lhes que estava no nosso museu da pedagogia. Não gostaram da resposta.
Nesse dia, compreendi que, enquanto a Ponte evoluíra para a atualização da proposta freinetiana, o Freinet dos meus amigos tinha sido “congelado”. O mesmo acontecera com outras propostas fundadas no paradigma da aprendizagem. As práticas eram de cariz instrucionista e o professor da “classe cooperativa”, não trabalhava em equipe – permanecia solitário, na sua sala de aula.