06/09/2019
Por Denis Plapler*
Após a APA (American Psychiatric Association) publicar o DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), em 1980, e incluir o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) em sua lista de distúrbios e doenças mentais, milhares de crianças de diferentes países passaram a ser diagnosticadas e medicadas com o Metilfenidato, mais conhecido pelo nome comercial de Ritalina ou Concerta. Posteriormente o diagnóstico foi atualizado no DSM IV, com uma pequena mudança, Transtorno de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade. O DSM é um manual de doenças diagnósticas que serve como parâmetro para a classe médica psiquiátrica de muitos países.
Nos últimos vinte anos, a droga passou a ser comumente indicada para o tratamento de supostos transtornos e distúrbios relacionados ao processo de aprendizagem de crianças e adolescentes. Após o consumo desta droga ser autorizado no Brasil, em 1998, milhares de crianças e adolescentes se tornaram usuárias, fazendo do país o segundo maior consumidor da droga no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Segundo dados do Instituto de Medicina Social da UERJ, em dez anos o consumo desta droga cresceu 775% no Brasil.
Embora os profissionais da saúde afirmem o TDAH como um problema genético e hereditário, a verdade é que jamais foi encontrado um marcador genético consistente e os estudos de neuroimagem mostraram-se incapazes de identificar uma etiologia diferente para questões como TDAH, assim como para TOD e Dislexia. A neuroanatomia do cérebro das pessoas diagnosticadas, como demonstrado por estudos de imagem, é normal. Os profissionais que afirmam o TDAH e similares partem de concepções equivocadas sobre o funcionamento do cérebro, sobre o ser humano e sobre o aprender.
Não podemos conceber o cérebro como um órgão apartado do indivíduo. É preciso compreender o cérebro como uma massa de modelar da cultura, afinal o ser humano é ao mesmo tempo um ser fisiológico, mas também emocional, social e político. Nossa atenção não depende apenas do funcionamento de uma região neural específica, mas de uma somatória de circunstancias que envolvem a nossa condição emocional, social, econômica.
As pesquisas dos efeitos do uso desta droga a longo prazo apontam que de fato há deterioração de pacientes que passaram a usar o tratamento medicamentoso em períodos de 24 a 36 meses. O consumo do Metilfenidato (Ritalina/Concerta) gera diversos efeitos colaterais perversos para as crianças, como crise de ansiedade, insônia, disritmia cardíaca, depressão, perda da criatividade, até mesmo casos de suicídio infantil. Sem compreender a necessidade de serem medicadas, as crianças se questionam se são loucas ou doentes.
Em muitos casos quando a família se recusa a aceitar o diagnóstico medicamentoso a escola ameaça não aceitar a matrícula do estudante que por vezes acaba cedendo com medo de se afastar e perder as amizades que construiu ao longo da vida. Entretanto, os achados negativos não costumam ser divulgados. O discurso falacioso do TDAH e outros diagnósticos similares, faz com que a identidade da criança seja formada associada a ideia de que é uma pessoa doente, o que é profundamente prejudicial ao processo de formação de sua subjetividade e consequentemente de sua autoestima.
Não existe nenhum fundamento científico ou pedagógico que fundamente a existência de TDAH, pelo contrário. Estas crianças não realizam um número menor de sinapses, não produzem menos serotonina e muito menos carregam alguma questão genética ou hereditária. Mesmo assim a área médica segue com frequência apresentando PET Scans complexos, contando como o cérebro TDAH funciona de forma distinta do cérebro “normal”, o que logicamente ajuda a vender o transtorno para o público leigo. Invariavelmente os sintomas de TDAH estão atrelados ao ambiente escolar e não aparecem de forma evidente durante as consultas médicas. Tornou-se prática geral inferir dano cerebral exclusivamente a partir de sinais comportamentais sem qualquer evidência neurológica de dano. Aqueles taxados como desatentos, desinteressados, indisciplinados, passaram agora a ser tratados como doentes, quando na verdade estão apenas sendo crianças. Pode não caber a infância dentro das escolas?
Se antigamente a escola usava da palmatória como castigo físico para tornar obedientes aqueles que insistiam em reagir as opressões normativas desta instituição, hoje o castigo físico é ainda mais violento, em formato de comprimido e fortalecido pelo discurso médico, castiga fisiologicamente as crianças, faz com que se afastem gradativamente de si mesmas e deixem de sentir e ser quem realmente são. Nenhuma criança tem dificuldade de prestar atenção, se não está prestando atenção no professor, está prestando atenção em outra coisa, que dialoga mais intimamente com as suas preocupações do momento. Não são as crianças que precisam ser diagnosticadas, mas sim as escolas.
O aprendizado ocorre através dos nossos sentidos, impedir que as crianças sintam aquilo que naturalmente sentem é afastá-las de si mesmas, sabotar o seu processo de autoconhecimento, conhecimento do outro e do mundo que as cerca, prejudicando consequentemente o processo do desenvolvimento de sua autonomia. É preciso respeitar o ritmo de aprendizado de cada estudante e abrir espaço para que possam fazer escolhas e aprender a partir da experiência. Se uma criança possui alguma deficiência em algum de seus sentidos pode-se afirmar que ela possua uma dificuldade de aprendizagem, caso contrário não. Se uma criança não tem nenhum problema de escuta ela não possui déficit de processamento auditivo, o novo modismo dos profissionais que buscam fugir do diagnóstico do TDAH, mas acabam caindo em outra armadilha.
Os médicos que ratificam os diagnósticos de TDAH, Dislexia e TOD estão afastados das escolas e não conhecem as crianças por eles medicadas. Os professores que acompanham as crianças nas escolas não possuem necessariamente conhecimento nem autoridade para contestar os diagnósticos dos profissionais da saúde, assim um problema inicialmente pedagógico é transformado equivocadamente em um problema de saúde. As escolas precisam interromper o encaminhamento destas crianças.
É sempre mais fácil dopar uma criança do que olhar para as questões sistêmicas do interior de instituições como a escola e a família. Precisamos distinguir o que é educação, o que é escolarização e o que é pedagogia. Educação é um processo natural da vida humana, acontece em todos os momentos, em todos os lugares, não educar é impossível, os nazistas foram educados justamente para serem nazistas. Já a escolarização é o processo de educação inerente a escola e que, infelizmente, não necessariamente é o mais correto ou qualificado. É preciso de fato segmentar e separar as crianças pela sua data de nascimento para que passem a semana dentro de salas, sentadas em carteiras enfileiradas, com a sua atenção fragmentada em aulas de cinquenta minutos, com o conhecimento estilhaçado em disciplinas que não dialogam entre si?
Por que no século XXI é ainda tão inovador para as escolas conciliar a ampliação do repertório dos estudantes e, ao mesmo tempo, permitir que haja espaços para que estudem aquilo que desejam? Que sentido faz avaliar estes jovens com provas e notas que os estigmatizam e não dizem nada a respeito daquilo que são ou podem ser? Desde 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu Art. 23, já autoriza a escola a se organizar de diferentes maneiras e, embora tenhamos já diversas experiências exitosas de escolas que se arranjam de maneira a propiciar de fato uma aprendizagem significativa, elas ainda são poucas.
A pedagogia precisa ser respeitada como ciência da educação, com todo acúmulo empírico já produzido ao longo de séculos. Isto implica em uma postura racional e reflexiva capaz de pensar com intencionalidade cada uma de nossas ações, levando a sério a responsabilidade de produzir coletivamente uma cultura dentro de cada escola através de ações coletivas. Estas ações se pensadas com intencionalidade carregam significados e assim otimizam a aprendizagem dos estudantes e abrem possibilidades para que aprendam a partir da experiência, não apenas sentados escutando, mas ativos, exercitando ao máximo todos os seus sentidos, reduzindo assim inevitavelmente não apenas os equivocados diagnósticos medicamentosos vinculados a supostas dificuldades de aprendizagem, como também o sofrimento psíquico destas crianças dentro destas instituições.
*Denis Plapler é sociólogo pela PUC-SP, pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pelo Departamento de Educação, Psicologia e Linguagem, autor da pesquisa Da Palmatória a Ritalina, a invenção do TDAH, que será publicada em breve. Criador do Portal do Educador, atuou como coordenador pedagógico no Colégio Viver e do Projeto Âncora. Foi consultor e assessor pedagógico pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para o Ministério da Educação (MEC) no mapeamento de escolas inovadoras no Brasil. Atualmente trabalha como Supervisor de Pesquisa no Centro de Desenvolvimento de Ensino Aprendizagem na Fundação Getúlio Vargas.