26/05/2022
Por José Pacheco
Freixo de Numão, 26 de maio de 2042
Sete horas da uma manhã enevoada, fria, muito fria, viajando pelo interior mais interior de Portugal, vi que um restaurante de estrada estava abrindo. Pedi ao motorista que parasse. Precisava aquecer as entranhas com um cafezinho retemperador.
Ao dirigir-me ao balcão, deparei com uma menina, aparentando uns sete ou oito anos, vergada ao peso de mercadorias, que transportava para o interior do estabelecimento. Tremia, esfregava umas mãos roxas, ofereci-me para a ajudar. Sorriu. Baixou os olhos. Acenou com a cabeça, aceitando a ajuda.
Enquanto saboreava um cafezinho, observava a menina, sentada numa mesa próxima da minha. Mantinha sobre o forasteiro um olhar misto de inquirição e gratidão. A certa altura, vi que colocava uns papéis sobre a mesa e que, com ar de enfado, rabiscava algo. Aproximei-me e meti conversa.
“Como te chamas?”
“Rosa, meu senhor.”
“Então, estás a fazer os trabalhos de casa?”
“É, meu senhor”
“E o que é que estás a fazer?”
“Num sei…”
“Gostas da tua escola?”
Respondeu com um encolher de ombros.
“E como é a tua escola?”
E foi mesmo assim que a Rosa descreveu a sua escola:
“Toca para a aula e a gente vai para a sala.
Depois, toca para o intervalo e a gente vi brincar.
Depois vem o toque de a gente voltar para a sala.
Depois, o toque para a gente ir comer.
Depois, toca para ir para a sala das atividades.
Depois toca para a gente ir para casa”.
Depois… o sem sentido que atrofia os sentidos, uma escola madrasta, que confina, controla e reproduz.
Do balcão, a mãe gritou:
“A camioneta está a chegar! Vê se te avias!”
“É isto, todos os dias. É uma mandriona, diz que não quer ir para a escola. E eu até entendo. Por mim, ela ficava a ajudar na loja. Que quer, senhor, a gente tem de ganhar a vida, não é? O meu patrão é meu amigo, vai-me dando emprego, mas a loja está para fechar. Cada vez vem menos gente. Ganho uma miséria e tenho três filhos para sustentar. Os outros ficam lá, com a minha sogra. Esta, que você viu, é a mais velha. Tenho de a tirar da cama pelas cinco ou seis, para me vir ajudar. Depois, vai para a escola. Fica lá do outro lado daquele monte, ali, vê?“
E lá se foi a menina. Pela janela da viatura, fitou-me com olhos que conservo dentro dos meus, enquanto percorro estradas do demo, terras de abandono e sofrimento, ao encontro de gente que tenta torcer o destino, mudando a escola.
Ao cabo de muitas curvas e contracurvas, cheguei ao meu destino desse dia. Como sempre acontecia, fui recebido com imenso carinho e muitas expectativas. No dia seguinte, conheci um extraordinário diretor de agrupamento de escolas. Conversa franca, decisões tomadas. Prometi voltar.
Para ficar a conhecer um pouco da realidade do chão de escola, a Daniela me levou a visitar a escola de uma comunidade do cimo da montanha. Um belo prédio de xisto requalificado, meia dúzia de educadores, um pouco mais de crianças, espaços bem equipados, mas vazios. Biblioteca fechada, sala de professores deserta.
No interior do país, o número de alunos diminuía, ano após ano. Já havia aldeias sem crianças. Municípios raianos envelheciam demograficamente, caminhavam para a extinção. A administração educacional funcionava sujeita a critérios economicistas. Os dinheiros, que da generosa Europa chegavam e eram encaminhados para essas paragens, se dissipavam em estéreis projetos.
A Escola era a instituição social que menos se alterara nos últimos séculos. A vida em sociedade mudara, valores se alteraram e, no essencial, a Escola do interior beirão era a mesma de há cem anos, uma instituição pensada para o mundo da primeira revolução industrial.