02/08/2022

A Educação Básica em Projeto para um Brasil Novo

Por Helena Singer*

Muito importante que as propostas para a educação sejam apresentadas no contexto de um projeto para o país. Sem isso, as propostas giram em falso – melhorar a qualidade, melhorar a formação do professor, definir bases curriculares, garantir aprendizagem… Se não sabemos para qual projeto de país queremos formar a próxima geração, como podemos saber quais aprendizagens precisam ser garantidas? Qual é a formação necessária do professor? Ou mesmo o papel do professor? Ou o papel da escola?

Há hoje forças organizadas na sociedade com propostas, projetos e experiências capazes de efetivamente constituir um Brasil Novo, no qual o desenvolvimento não se faça às custas dos recursos do planeta e da exploração dos trabalhadores, em que a biodiversidade e o multiculturalismo não sejam apenas valorizados, mas possam ser eles mesmos os eixos condutores desse novo país. Da produção ao consumo, há que se considerar as dimensões social, econômica, política, ecológica e cultural, projetando-se a construção de um país democrático, inclusivo, justo e solidário, onde todos possam viver com dignidade e contribuir para o bem comum.

Trata-se da ampla e diversificada economia estruturada sobre as energias limpas e renováveis, a produção agroecológica, a produção industrial de tecnologias de controle da poluição, o transporte compartilhado ou coletivo e a redução logística de distâncias entre produtores, distribuidores e consumidores, a bioconstrução, o varejo que prioriza os produtos de origem conhecida, sustentável e orgânica, o turismo que fortalece a produção artesanal, artística, gastronômica e cultural local, as moedas sociais, o microcrédito, os bancos comunitários e clubes de troca, as cooperativas de consumo. De um modo geral, trata-se de estratégias que integram quem produz, quem vende, quem distribui e quem compra sob os princípios da democracia, solidariedade, cooperação e o respeito aos limites do planeta.

Para este projeto, a escola tem a desempenhar papel fundamental. Sendo o equipamento público mais bem distribuído pelo território nacional, com um corpo multidisciplinar de profissionais e o mandato de socializar as novas gerações nos valores, tecnologias, expressões e tradições necessários a um país democrático e potente. No entanto, para realizar este papel, as escolas precisam ser reconhecidas como espaços de produção de conhecimento, tecnologia e inovação.

Nesta perspectiva, o projeto político-pedagógico de cada escola é definido coletivamente de acordo com as vocações locais e os objetivos comunitários e, com base nesse projeto, os currículos serem criados. Toda a estrutura e organização do tempo, espaço, trabalho dos professores e percurso dos estudantes se organiza a partir disso.

Estudantes, professores e comunidades formam-se colaborativamente no enfrentamento dos problemas reais que decidem priorizar e na realização do projeto coletivo, aprendendo a manejar e interpretar as informações, criando inovações, soluções e oportunidades.

Este projeto de país sustentável, diverso, inclusivo, democrático e inovador criará estratégias, metodologias e tecnologias para que os conhecimentos gerados pelas diversas escolas sejam sistematizados e compartilhados, prevenindo erros, enganos, impasses e conflitos desnecessários, mas sem a pretensão de um caminho único, pois cada escola e cada comunidade são singulares em suas potencialidades.

Assim como o Brasil já possui milhares de empreendimentos econômicos orientados pela perspectiva democrática, inclusiva e solidária, também possui milhares de organizações educativas deste tipo. Escolas de ensino médio e técnico em áreas rurais que integram os saberes comunitários com os saberes científicos de manejo agroecológico, possibilitando aos jovens criarem as condições para permanecer no campo, realizando-se pessoal, profissional e socialmente. Escolas em territórios indígenas que sediam os planos de manejo anuais da comunidade, tendo os estudantes como seus protagonistas. Escolas urbanas que, integradas entre si e com as associações de moradores, planejam conjuntamente como transformar o bairro em território educativo, com a multiplicação de oportunidades para todos. Escolas que são agentes socioambientais, mobilizando estudantes, professores e gestores na criação de novas iniciativas e tecnologias que transformam a realidade local (todos os exemplos citados podem ser conhecidos aqui).

A sólida tradição brasileira com a educação popular e comunitária também produziu no país excelentes exemplos não escolares que deveriam inspirar as políticas públicas educacionais não só no fortalecimento da escola, mas também no fomento à multiplicação de organizações deste tipo. Como, por exemplo, o museu de arqueologia gerido pelas crianças que estimulou o turismo comunitário no Cariri. Ou o centro de cultura popular que transbordou para a criação de sítios de permacultura nos quintais do Vale do Jequitinhonha. Ou as bibliotecas comunitárias que têm se tornado espaços de criação coletiva de projetos locais sustentáveis nas periferias de São Paulo.

Para deixarem de ser experiências isoladas, é preciso que os recursos públicos sejam direcionados para sua multiplicação e as políticas sejam orientadas pelos mesmos princípios, superando a burocratização que impera no financiamento, nos currículos, nas formações dos profissionais e, sobretudo, nos processos e instrumentos que constituem os indicadores de avaliação da qualidade da educação básica e critérios para ingresso no nível superior.

A pandemia pode ser um vetor para a transformação, na medida em que a longa suspensão da estrutura da educação escolar – sua forma de organizar os tempos, espaços, relações e prioridades, promoveu experiências novas e aprendizagens significativas sobre o uso pedagógico das novas tecnologias, aproximou equipes escolares das famílias e fomentou articulações intersetoriais. Mas, para isso, é preciso haver um projeto que direcione a transformação. Quando as políticas públicas de educação passarem a ser construídas tendo por objetivo um país menos desigual, mais democrático e sustentável, por ponto de partida os lugares onde este Brasil já existe e como fio condutor o reconhecimento da capacidade dos educadores, estudantes e comunidades, aí sim o Novo Brasil tornar-se-á viável.

*Apresentação oral feita durante a mesa “Educação Básica” na Série de Seminários Projeto para um Brasil Novo,
organizada pela SBPC, em 23 de março de 2022. A íntegra da mesa encontra-se disponível neste link. Os debates foram sistematizados no Caderno SBPC Projeto para um Brasil Novo disponível neste link.

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