20/09/2022

No retorno presencial, Maranguape (CE) reinventa a escola pública brasileira a partir de Caixas de Escuta

Por Denis Plapler

“Educar é impregnar de significado cada instante”
Paulo Freire

Às vésperas da ascensão do nazismo na Europa da metade do século XX, um médico abandona sua profissão clínica e passa a atuar como educador, dirigindo dois orfanatos na antiga Varsóvia, um apenas de crianças judias e o outro de crianças cristãs, ou não judias. O forte antissemitismo daquele contexto já impedia as crianças de conviverem no mesmo orfanato. Nestas duas casas de acolhimento o médico-educador, pediatra, escritor e poeta, famoso pelo nome Janusz Korczak, ao lado de duas grandes educadoras, companheiras de trabalho, Maria Faiska e Stefania Wilczynska, passaram a criar diversos dispositivos pedagógicos que transformaram completamente a vida e as perspectivas daquelas crianças, que de abandono passaram a sentir dignidade. Na busca por estratégias que pudessem auxiliar ao máximo o processo educativo, estes educadores criaram dispositivos como um jornal feito pelas crianças, um tribunal autogerido por elas no qual determinavam as regras de convivência e, dentre outras coisas, uma poderosa Caixa de Escuta, na qual as crianças depositavam tudo aquilo que pensavam e sentiam, mas que era difícil ser dito, este material era bastante cuidado e aproveitado pelos educadores para pensar a educação destes jovens.

Com ascensão de Hitler na Alemanha e o crescimento do nazismo na Europa, a Polônia é invadida e ocupada, Janusz Korczak e suas 200 crianças são então levados ao campo de concentração e extermínio de Treblinka, no qual seguiram vivendo juntos do modo como era possível, até que no dia 7 de agosto de 1942, foram todos levados para os vagões do trem que os levaria as câmaras de gás, na qual foram todos assassinados, por serem judeus e não arianos, brancos, de olhos azuis, como pregavam os nazistas.

Como médico, constato sintomas: vejo uma erupção
da pele, escuto a tosse, sinto o aumento do calor do
corpo; com a ajuda do olfato, percebo o odor da
acetona na boca da criança. Certos sintomas são
perfeitamente visíveis; outros, escondidos, pedem um
exame mais acurado. Como educador, também
constato sintomas: um sorriso, o riso, um rosto
enrubescido, lágrimas, um bocejo, um grito, um
suspiro. Como médico, devo reconhecer uma tosse
seca, cheia, ou aquela que vem de uma irritação na
garganta; como educador, preciso saber que existem
vários tipos de choro: lágrimas, soluços, mas também
aqueles que se expressam pelos olhos, choros
interiores.

KORCZAK, Como amar uma criança, 1997, p. 246

Na semana do 7 de março os formadores da Comunidade Educativa CEDAC estiveram em Maranguape, CE, eu e Juliana Ruschel, em conjunto com nossa Coordenadora Pedagógica Márcia Cristina Silva, iniciamos no município o Ciclo 1, do programa Melhoria da Educação, iniciativa do Itaú Social que conta com a parceria técnica da CE CEDAC. O programa tem por objetivo contribuir com o fortalecimento das secretarias municipais de educação para garantir acesso, permanência e aprendizado com equidade para crianças e adolescentes.

Nos reunimos logo na segunda-feira, pela manhã com a Secretaria de Educação em conjunto com a prefeitura. Toda a equipe técnica da SME esteve presente ao lado do prefeito Átila Câmara, seu vice Gurgel Neto, assim como o Secretário de Educação Junior Soares e a Secretária Adjunta Sirone Freire. O nome Maranguape vem do Tupi-Guarani, Maragoab, significa Vale da Batalha, em referência a batalha da colonização indígena no território. Ali viviam indígenas de diferentes tribos, como os Potiguaras e Pitaguaris, que já cultivavam alimentos como mandioca e milho, parte da história dos conflitos destes territórios.

O local escolhido pela SME para estes primeiros encontros formativos foi a Escola Municipal Rio Grande do Norte. Antes do primeiro encontro houve uma breve visita à sede da SME, como forma de conhecermos as diferentes Coordenadorias e suas equipes. Compondo a equipe técnica, como os principais responsáveis pelo acompanhamento constante do programa, estavam também Jackson, Eliézia, João Sérgio e Maristela, técnicos formadores da SME responsáveis pelo acompanhamento do programa. O programa prevê a formação, pela CE CEDAC, de toda a equipe da SME, assim como dos Diretores e Coordenadores escolares. Maranguape foi a única cidade do Ceará e uma das únicas da região Nordeste, a ser contemplada com esta oportunidade que garantia o acompanhamento de três tecnologias ao longo de três anos, Língua Portuguesa, Matemática e Gestão para o Acompanhamento das Aprendizagens.

Encontro da equipe formadora da CE CEDAC com a prefeitura e SME

O programa Melhoria da Educação propõe ao longo destes três anos 4 Ciclos formativos presenciais por ano, com uma semana de duração cada, somados a um sério trabalho de campo que inclui visitas às unidades escolares.

O Ciclo 1 da tecnologia de Gestão para o Acompanhamento das Aprendizagens foi bastante focado no tema da escuta e do acolhimento, pensando justamente o cenário da educação atrelado ao retorno presencial às escolas pós pandemia, portanto a importância da atenção ao estado emocional das pessoas, a tudo aquilo que passaram nesse duro período, assim como na necessidade do entendimento do acolhimento e da escuta como ações permanentes, fundamentais para as escolas, mais ainda agora, nesta retomada das atividades.

A semana formativa reuniu aproximadamente 80  escolas municipais, seus diretores e coordenadores, buscou também dentre os objetivos, fortalecer o trabalho em parceria das duplas gestoras, diretores e coordenadores, como forma de contribuir para melhoria da gestão das escolas e consequentemente das oportunidades de aprendizagem de seus estudantes. Nos encontros formativos foram apresentados dados relativos ao impacto da pandemia sobre a educação pública brasileira. Neste período, de acordo com a Unicef, 5,5 milhões de estudantes não tiveram acesso ou tiveram acesso limitado às atividades escolares. Segundo o Comitê Gestor da Internet no país, 47 milhões de pessoas ainda não possuem acesso à internet. Ainda de acordo com a Unifec 1,4 milhões de crianças não retornaram à escola no Brasil. Estes dados chamam a atenção para o tamanho do problema e do desafio que as escolas enfrentaram com a retomada das atividades presenciais, crianças que, por exemplo, passaram do segundo para o quarto ano sem terem realizado seu processo de escolarização, que podem ter aprendido muitas coisas durante este período, mas que também perderam oportunidades profundamente importantes para o seu desenvolvimento neste aspecto. Ainda dentro deste tema os gestores se debruçaram também sobre a importância do luto neste momento, como uma questão de política pública, diante da quantidade de óbitos causados pela Covid-19, somados a importância da saúde emocional de professores e estudantes neste retorno.

Equipe do CEDAC com os Técnicos Formadores da SME de Maranguape

A formação foi bastante focada também no tema da escuta, dentro de uma visão sistêmica, dialógica e colaborativa, do coração da escola à Secretaria Municipal de Educação. Diretores e Coordenadores Pedagógicos trouxeram informações importantíssimas, referentes tanto às ações realizadas pelas escolas ao longo da pandemia, como pela SME, para conseguir alcançar e apoiar todos os estudantes e suas famílias, neste contexto. Ainda assim diversas preocupações foram realçadas, fome, desemprego, falta de recursos, foram realidades aparentes na cidade, no país e no mundo. Dentro deste triste cenário, Maranguape se mostrou muito eficiente no que diz respeito a sua busca ativa escolar pelo combate à evasão, tão comum neste período em muitas regiões. A rede realizou diversas ações que foram capazes de evitar prejuízos maiores.

Diretores e coordenadores trabalhando em grupos nos encontros formativos

Após muito trabalho, conversas, leituras e discussões, as escolas saíram com algumas responsabilidades, dentre elas a de construir uma simples, mas potente, Caixa de Escuta, na qual cada criança e adolescente poderia responder de forma reservada e anônima a algumas questões referentes a aquilo que aprenderam durante a pandemia, assim como aquilo que sentiram que não aprenderam, o que esperam da escola e como se sentem neste retorno. Este valioso material foi posteriormente observado e analisado pelas equipes de cada escola, como matéria prima para as transformações necessárias às escolas de acordo com as exigências do nosso tempo. Ligada a esta estratégia de escuta, o programa Melhoria da Educação realizou também um levantamento de dados a respeito do acompanhamento das aprendizagens dos estudantes da rede com relação a habilidades de leitura e escrita no município, com o objetivo de contribuir para o processo de alfabetização e letramento dos estudantes, considerando, ainda, o grande impacto do período sem aulas presenciais durante a pandemia.

Diretores e Coordenadores trabalhando em grupos nos encontros formativos

Estas ações conjuntas buscaram dar propósito e significado à escola destas crianças e adolescentes, com o objetivo e desafio de auxiliá-los neste percurso escolar no qual tantas oportunidades de aprender se fazem imprescindíveis. O envolvimento das escolas de Maranguape foi maravilhoso, a ação foi muito bem vista e aceita pelos diretores e coordenadores, que imediatamente passaram a agir.

Caixa de Escuta na escola Chico Lima

No mês de abril o programa Melhoria da Educação realizou o seu segundo ciclo na cidade, com foco nas práticas de leitura e escrita, trabalhamos a importância do acesso aos livros, a literatura infanto juvenil, aos espaços alfabetizadores, com o objetivo de observar e retomar as ações realizadas para dar continuidade a estes desafios, de pensar coletivamente como construir junto a esta rede, escolas capazes de se repensar, para auxiliar da melhor forma os seus estudantes e garantir assim os seus direitos.

As caixas de escuta revelaram crianças alegres com o retorno, mas também uma quantidade enorme de casos de crise de ansiedade, nos papéis depositados nas caixas as crianças revelaram-se sedentos por aprender, tanto a ler, escrever, fazer contas, como também novas línguas, música, dança, esportes, além de exigências como o sonho por uma piscina na escola.

Se no Ciclo 1 pudermos levar para sala do Secretário Junior Soares o material de registro da escuta dos gestores escolares, nesta segunda etapa toda a SME acabou enfeitada pelos cartazes dos registros das crianças, nas caixas de escuta. Fica aqui assim, uma bonita referência para outras redes, daquilo que pode ser feito para pensarmos na nossa imensa responsabilidade com estes jovens.

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