01/12/2021

Para se fazer uma escola, não basta juntar alunos

Por José Pacheco

Vidigal, 24 de novembro de 2041

Nos idos de setenta, fui trabalhar numa escola do Portugal profundo, chão de terra, paredes-meias com uma corte de gado. Quarenta e nove maravilhosas crianças, mãos calejadas do uso da enxada, senhoras de segredos, que eu nem sequer imaginara.

Trocamos saberes. Ensinaram-me como conduzir ovelhas e a produzir queijo. Ajudei-os a aprender os saberes de livros, que eles não tinham podido ler. Com livrinhos ofertados, fiz uma pequena biblioteca, enquanto eles me abriam páginas do livro da Natureza. Acatávamos a recomendação do Comenius de levar a escola para debaixo da árvore (ou para debaixo da mangueira, como fazia o educador Tião Rocha). E, assim, fomos “aprendendo uns com os outros, mediados pelo mundo”, até ao dia em que me pediram que lhes dissesse “de onde vinham os bebês”.

Levei-lhes dois livrinhos de uma editora católica, que abordavam o assunto em pezinhos de lã. Os meus alunos aprenderam aquilo que a ignorância havia infectado de malícia. Expliquei-lhes aquilo que os seus pais sentiam vergonha de explicar.

Eu sabia o caminho que pisava. Na bucólica paisagem, os toscos casebres abrigavam famílias fustigadas por um abandono de séculos, morava um povo submisso aos desígnios de Deus e dos “coronéis” locais. Poderia faltar o pão, mas sobravam piolhos e… preconceitos.

Nesse tempo, a ignorância era condimento de sanhas destrutivas contra tudo o que escapasse à mediocridade reinante. Meio século decorrido, no Brasil, os meios eram mais sofisticados – em meados do século XX, não havia computadores, nem fake news – mas, a manipulação da ignorância em nada diferia da de antigamente. Pseudônimos e anonimatos protegiam os que atiravam pedras e escondiam a mão. A deturpação da realidade – à mistura com uma ponta de verdade, para a mentira ser segura – produzia os mesmos nefastos efeitos.

Não me surpreendeu o fato de o povo português, num escrutínio secreto, ter elegido Salazar como “o cidadão mais ilustre da História”. A Ditadura prolongara-se por quarenta e oito tenebrosos anos. Depois, os dinheiros da Europa travestiram-na de Democracia. Nos idos de vinte, eram inúmeros os supermercados e escasseava a cidadania. Dispúnhamos de novas estradas, por onde se chegava a lugar nenhum.

As grandes escolas converteram-se em armazéns de alunos. O esforço de reflexão e mudança de alguns professores era anulado pelo usufruto de privilégios por parte de funcionários afetados por uma crônica “falta de tempo para reunir e debater o sistema”. O Estado dispunha de professores que não merecia, tão elevado era o seu sentido de profissão. Mas também contribuía significativamente para a “crise da escola”, quando dava emprego a quem não sabia fazer mais nada, ou a quem tinha tendência para o menor esforço.

Muitas das escolas estavam cativas de uma organização burocrática e atacadas de insensibilidade. Por via de um segundo emprego, ou por mera desmotivação, muitos docentes iniciavam as suas carreiras como as acabavam: a “dar aulas”, a corrigir testes, a debitar notas para uma pauta, a preencher “papelada”, a cumprir inúteis rotinas e rituais e a excluir alunos em conselhos disciplinares.

Não chegavam sequer a conceber outro modo de ser professor. Não chegavam sequer a imaginar o universo de saber e de saber-fazer a que poderiam ter acesso e que lhes teria permitido ultrapassar os limites do senso comum pedagógico e a reprodução de práticas anacrônicas. Não chegavam a perceber que, para se fazer uma escola, não basta juntar alunos, professores, funcionários, manuais didáticos e livros de ponto.

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