14/09/2021
Por José Pacheco
Arrentela, 30 de agosto de 2041
Querida Alice, começo por te enviar um beijo virtual de parabéns, por ser o dia em que celebramos o teu aniversário. e para te contar que, no tempo em que nasceste, um Pássaro Encantado me fez atravessar o mar e me conduziu a lugares onde o mundo retomava a forma de um “novo mundo”.
Foi no eco dos seus passos que o vosso avô desfrutou de novos sabores e significados, no afago de doces horas conversadas. Neste mesmo dia, mas há vinte anos, o teu avô desembarcava em Lisboa, para mais uma tentativa de ajudar educadores desse tempo a fazer e a refazer pontes entre a barbárie e uma educação humanizadora.
Com o Sabiá do livrinho que para ti escrevi, partilhei memórias de uma Escola de que, hoje, estranharás os contornos, mas que ainda era a mesma no princípio do século em que vieste ao mundo. Era uma Escola que procurava justificações, mas que vivia amarrada a superstições. Contava mais de duzentos anos, estava velha, rabugenta. Uma fada má a tinha fadado para encerrar jovens almas censuradas entre muros altos.
Contou-me o Sabiá que pássaros românticos assumiam a denúncia de que a Escola estaria, há muito e sem se dar conta, imersa numa profunda contradição. A Escola recusava o espelho de se mirar. Até que foi chegado o tempo em que poderosas sombras corroíam as pontes que davam passagem à utopia.
Ítalo Calvino imaginou Marco Polo descrevendo perante Kublai Kan uma ponte, pedra a pedra. Marco Pólo insistia na ideia de que a ponte não era sustida por esta ou por aquela pedra, mas pela linha do arco que elas formavam.
Sem nada entender, o poderoso Kublai Kan disse que apenas o arco lhe interessava e ordenou a Marco que parasse de falar de pedras.
Marco Pólo respondeu que, sem pedras, não haveria arco.
Os poderosos de todos os tempos sabiam que toda a ponte tinha a sua pedra angular, mas ignoravam que uma pedra sozinha não segurava um arco. Neste segredo residia a força da ponte. Poderia vergar sob o peso de uma moral caduca, feita de tabus e superstições, mas não cedia. E, se havia quem quisesse destruir o ato criador, as pontes para o futuro da Escola resistiam na sólida consistência das pedras fundadoras.
Talvez se torne mais fácil para vós, que viveis outros tempos, compreender metaforicamente por que motivo, no tempo em que nascestes, como nos idos de vinte, era preciso fazer pontes, “pontificar” (no dicionário: “educar”). Compreender que as pontes servem para unir margens, ainda que tanto mar haja para cumprir. Ou, como dissera o Aleixo, “quem prende as águas que correm é por si próprio enganado. O ribeirinho não morre, vai correr por outo lado”. Porque, logo adiante, a esperar pela gente, o futuro está.
Os dias em que ensaiáveis os primeiros sons e os primeiros passos, foram para o teu avô dias de dúvida e ansiedade. Nesse tempo, a par da melopeia do chapim-real, que quebrava o silêncio das noites, a memória de futuros encontros com o doce cantar do Sabiá coloria a tristeza dos dias cinzentos.
Naqueles fins de tardes de dias incertos, no bater de teclas de uma máquina usada no tempo em que nascestes, eu encontrava arautos de prodígios e reencontrava o significado de “país irmão”. Ao ritmo de um digitar que diferia do ritmo de pensar, eu recolhia os ecos de um S.O.S. solidário que consolidavam pontes de fraternidade.
Contornando a imensa curva norte-sul, embalado no suave flutuar de aragens atlânticas, o Sabiá celebrava um canto que ninguém conseguia sufocar. Pois, se a ponte resistisse, não importava que a aquarela da nossa tênue vida se fosse descolorindo, descolorindo…
PS: um beijo, também, para o teu pai e para o teu irmão.