09/03/2021
Por José Pacheco
Vendinha, 17 de fevereiro de 2041
Foram muitas, mesmo muitas, as vezes que ouvi esta pergunta:
“A Escola da Ponte e o Projeto Âncora não têm aula nem turmas, não têm série, não aplicam prova, nem dão nota. Estão dentro da lei?”
“Sim. Estamos dentro da lei”.
“Então, as escolas que têm aula, turmas, série, que aplicam prova e dão nota… estão fora da lei?”
“Sim, estão fora da lei. Basta olhar para os péssimos indicadores que o instrucionismo produz”.
Nos idos de vinte, muitos professores estavam crentes de que a lei não permitia a mudança das práticas. E, com mágoa, inferi que a maioria nem sequer tinha lido a lei, que autorizava o funcionamento da sua escola: o seu projeto político-pedagógico.
Por isso, convidei os educadores das turmas-piloto para fazer análise documental. Propus que procurassem artigos de leis, que permitiam mudança, inovação. E que identificassem aqueles que a administração escolar não cumpria.
Dar-vos-ei exemplos de irregularidades, começando por aquele que com eles partilhei, no fevereiro de há vinte anos: o incumprimento da Constituição.
No artigo 205, a Constituição de 1988 nos dizia que a educação era direito de todos e dever do Estado e da família, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania. A educação era considerada direito subjetivo, direito de todos!
O direito de todos à educação já estava inscrito na Constituição de 1934. A Constituição de 1946 assim o definia: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola”.
Na Constituição de 1969, o artigo 176º assim rezava: “A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola”. A educação já era considerada direito social e se prefigurava como serviço público. Era dever do Estado facultá-la.
Porém, o poder público, através da administração educacional, impedia o cumprimento de um direito fundamental. Se uma lei era publicada, criando abertura para a melhoria do sistema educacional, logo uma regulamentação instrucionista surgia para a neutralizar.
Nos idos de vinte, a racionalidade burocrática prevalecia sobre critérios de natureza científica. Quase todas as leis se fundamentavam em propostas escolanovistas, no paradigma da aprendizagem. Mas, quando regulamentadas, eram descaracterizadas, menosprezadas. Impunemente, o negacionismo educacional se impunha.
Se a “Carta de 1824” e a Constituição de 1891 definiam a educação apenas como instrução, a Constituição Federal de 1988 passou a considerá-la instrumento de comunicação, processo de socialização, de aprendizagem, voltado ao desenvolvimento intelectual e ético, à construção de uma nova cidadania. E acrescentou a participação da família no processo educativo.
O Estado reconhecia que a tarefa de educar também cabia a uma sociedade civil organizada. Nada impedia que associações comunitárias e organizações não-governamentais pudessem, em conjunto com as famílias e o Estado, realizar o ato de educar. A educação, como direito de todos e dever do Estado e da família, não poderia ser confinada em estabelecimentos de ensino, mas contextualizada em comunidades.
Até aos anos vinte, a imposição de uma regulamentação instrucionista contrariou os desígnios da lei. Até ao momento em que, cumprindo o disposto numa portaria publicada por uma secretaria de educação, professores, famílias e comunidades se uniram num projeto comum.
Netos queridos, o prometido é devido e disso vos falarei.
Beijos com saudades dentro!