26/01/2021
Por Denis Plapler
Nas escrituras da mitologia hebraica de 3 mil e quinhentos anos atrás, para sobreviver a uma peste os hebreus obedecem a um aviso divino ofertado a Moisés, um pastor, que os previne para que permaneçam reclusos dentro de suas casas e pintem as suas portas com sangue de cordeiro, como forma de preservar as vidas de seus filhos primogênitos do anjo da morte, que virá para libertar os hebreus da escravidão no Egito.
“Disse então o Senhor a Moisés: Enviarei ainda mais uma praga sobre o faraó e sobre o Egito. Somente depois desta ele os deixará sair daqui e até os expulsará totalmente (…) Todos os primogênitos do Egito morrerão, desde o filho mais velho do faraó, herdeiro do trono, até o filho mais velho da escrava que trabalha no moinho, e também todas as primeiras crias do gado.“(Êxodo, 11).
Em um período em que o mundo era ainda governado pelo mítico religioso como autoridade de saber e poder, não ainda por um governo forjado na suposta racionalidade empírico científica, as escrituras mitológicas eram a forma de explicar o mundo, funcionavam como instrumentos de comunicação e de controle das lideranças, monárquicas e sacerdotais, sobre seus povos. Sabemos que não foi esta a primeira ou última peste, praga ou vírus que nos obrigou como humanos ao confinamento para nossa sobrevivência. Já no início do século passado outra pandemia fez nascer escolas mais abertas, entretanto, ainda presos ao hábito de suas culturas escolares, tornaram a enfileirar carteiras à frente dos professores, ainda que do lado de fora. Passado pouco tempo voltaram a enclausurar-se em escolas fechadas, com estudantes novamente sufocados dentro de edifícios.
Temos neste início de século XXI uma nova oportunidade de aceitar e aprender com aquilo que estamos vivendo. O ano foi pesado para todos, mas principalmente para os mais expostos a um sistema econômico que ao mesmo tempo adoece e abandona as pessoas. Em diferentes segmentos trabalhadores não tiveram respeitado o seu direito aos protocolos de reclusão e prevenção ao contágio. Pessoas se viram privilegiadas pela cultura do home-office, mas ao mesmo tempo adoecidas pela multiplicidade de demandas e funções ininterruptas, pois no momento que foi preciso se enclausurar como forma de sobreviver, suas casas foram invadidas e suas privacidades atropeladas. Acompanhamos o enclausuramento atingir o limite da saúde mental das pessoas e o medo do contágio dar lugar ao desespero por um pouco de liberdade e privacidade. Para além do lamentável negacionismo científico fortalecido por um presidente tirano e inconsequente.
Diante da pandemia a ação política sensível de um governo honesto e humano seria investir pesado em todas as formas de garantir o recolhimento necessário para toda a sua população, diferente do que se passou em países como o Brasil, com a sua classe trabalhadora jogada ao vírus pelo mercado. Poderia ter sido pior se não tivesse o Brasil herdado do PT o seu Sistema Único de Saúde. Uma renda mínima decente, a exemplo daquilo que luta por toda vida o Senador Eduardo Suplicy, teria talvez salvado a destruição de milhares de vidas e famílias também. O vírus que nos ameaça no início do século XXI é uma grave denúncia de tudo aquilo que adoece a nós e ao planeta, aquilo que nos sufoca e nos retira o sentido, retira das pessoas a sensibilidade, o olfato, o paladar, ferramentas que nos permitem aprender o mundo. Um vírus que faz como vítima inicial os chineses, se multiplica pelo planeta e tem nos EUA seu expoente mundial nos números de contágio e mortes, sinaliza a fragilidade de um sistema econômico orientado por estes países como suas maiores referências de sucesso, um modelo econômico que expõe nossa espécie à morte sem oferecer sequer um serviço universal de saúde pública, arremessando realmente as pessoas para dentro das covas e privatizando inclusive cemitérios, um projeto econômico que promete justiça social sempre no futuro enquanto no presente produz desigualdade e miséria.
O capitalismo como um sistema evidentemente produtor de violência, exclusão social e morte passa a ser ainda mais frágil e indefensável politicamente após mais esta pandemia, a falta de um sistema universal de saúde pública se mostrou uma opção política categoricamente genocida. Se historicamente Nietzsche nos deflagrou estruturas morais, Marx estruturas econômicas e sociais e Freud estruturas psíquicas e inconscientes, vivemos um especial momento de transformação no qual estruturas racistas e machistas seguem sendo cada vez mais expostas e denunciadas por lideranças dos campos das artes, das ciências, dos esportes, no mundo do trabalho, conteúdos antes marginalizados passam a receber centralidade, o que era reservado a escola de samba já ocupa a universidade, Lélia Gonzalez e Milton Santos já fizeram escola, no Brasil de Candeia, Cartola e Jacob do Bandolim, intelectuais e artistas escancaram o Brasil que deu certo, de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Clara Nunes, Elza Soares, a Manu Brown, Emicida, Criolo, MC Soffia, Tom MC, Bel Santos Mayer, Tia Ma, Jessé Souza, Djamila Ribeiro, Sílvio Almeida, Ailton Krenack, Alcinda Mariaíndia, tantos outros, não apenas indivíduos, mas coletivos, estão ocupando espaços e colocando suas vozes na busca pela construção de um novo paradigma social que supere também as estruturas racistas e patriarcais, isto passa por um outro paradigma de educação que proponha outras formas de gozo e castração que não as já reconhecidas como opressoras, para além da desigualdade social devastadora de talentos nas periferias.
Desta nova construção fazem parte todas e todos, pois passa pelo reconhecimento das desigualdades, das violências, opressões e explorações históricas, assim como da necessidade de autocontrole e combate daquilo que a psicanálise nomeia como pulsão de morte e habita o interior de cada um de nós, aquilo que na política chamamos de fascismo e mostra historicamente o seu poder de destruição, parafraseando Paulo Freire, (…) todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje (…). Temos de saber o que fomos, para saber o que seremos.
Foi pensando assim que cheguei a Associação Janusz Korczak do Brasil, a vida não poderia ser mais generosa, gratidão com o peso do tamanho da responsabilidade e do respeito.
Acompanhamos neste atual contexto, no Brasil e no mundo, lindas e pequenas experiências de resistência, ainda que isoladas, a multiplicação dos círculos de cuidados e aprendizagens em vizinhança, já comuns à sabedoria e ancestralidade das periferias brasileiras, agora extremamente adequada à classe média, órfã das escolas e babás. Em diversos países, um número considerável de pessoas se deslocou para espaços mais abertos e de natureza, seja no campo ou no litoral. Nestas cidades o confinamento é menos sofrível e deprimente justamente pelo privilegiado contato com a natureza e facilidade de circulação em ambientes abertos, verdes e com menor risco de contágio. Com o acúmulo dos meses as famílias passaram a organizar encontros de pequenos grupos de crianças em espaços verdes e abertos sob a mediação de educadoras.
Com as escolas públicas e particulares fechadas por praticamente todo o ano, brotaram de forma irreflexível as alternativas de ensino aprendizagem a distância. O mundo pandêmico acompanhou um processo de aceleração da hiper digitalização, não apenas nas bilhões de lives, mas nas novas diversas formas de ensino aprendizagem criadas durante esta nova pandemia, associadas ao uso de novas tecnologias e vinculadas à possibilidade de vidas mais nômades. Além de um grupo restrito de pessoas capazes de trabalhar sem tanto vínculo a um território ou local específico, aulas e novos cursos de todos os tipos e gêneros foram criados no meio digital, pessoas passaram a fazer yoga, terapias e doutorados a distância.
Mas para além das telas que mantêm crianças aparentemente conectadas e isoladas, pudemos acompanhar também um movimento interessante em diferentes contextos socioeconômicos. Crianças sem lugar em suas casas, muitas vezes jogadas às telas, ou sem ter com quem ficar, exigiram uma reorganização social. Os círculos de cuidado e educação em vizinhança já comuns à realidade de comunidades brasileiras, com altos índices de mães solteiras e trabalhadoras, por exemplo, passaram a ser uma alternativa também para a classe média, assim como para elite refugiada no interior e no litoral do entorno das grandes capitais. As áreas verdes antes desprezadas pelo mercado imobiliário foram hiperinflacionadas pelos corretores de plantão. Com o prolongamento da pandemia, o isolamento infantil passou a ser muito prejudicial às crianças isoladas pelo temor ao coronavírus, muitas vezes filhos únicos, passaram a desenvolver manias, expostas a altos níveis de violências domésticas, mesmo nas casas mais tranquilas. Famílias passaram a se reorganizar para que pequenos grupos de crianças passassem a se encontrar em diferentes contextos, sob os cuidados de um número pequeno de educadores, geralmente educadoras, preferencialmente em espaços abertos e seguindo todos os protocolos de prevenção ao contágio.
Temos já um cenário planetário que grita por possibilidades como novas escolas abertas. Não podemos sair desta pandemia e voltar a prender as crianças e adolescentes em espaços fechados como salas de aula convencionais, separados pelas suas datas de nascimento. Mais do que isto, não podemos seguir fechando o tempo destes estudantes em aulas de cinquenta minutos, não podemos fechar o conhecimento em disciplinas isoladas, muito menos podemos fechar a avaliação destes estudantes em números ou letras, provas e notas que os rotulam e não provam quem verdadeiramente são ou podem ser. Uma pedagogia de aprendizagem aberta entende a mudança como a única coisa permanente, é aberta às diversas possibilidades da vida, mesmo com princípios, valores e pressupostos bastante sólidos para uma sociedade já tão líquida.
O professor é um intelectual orgânico, um profissional capaz de adentrar em distintas comunidades e culturas. Ao longo dos anos de trabalho estive em cerca de uma centena de escolas públicas de diferentes estados brasileiros, em todas elas fui muito bem recebido, em grande parte das escolas havia bastante espaço aberto, muitas vezes infelizmente subutilizado, diferente de experiências públicas exitosas, por exemplo, no campo da educação integral, inclusiva e democrática, que procuram explorar o território para além dos muros da escola. Dizer que a escola pública não tem escolha é querer atrelar poder de consumo a poder de escolha, deixar de diferenciar o que é escolher do que é comprar, na contramão de filosofias existencialistas, que jamais invisibilizam as violências e desigualdades, pelo contrário, denunciam. A escola pública é um direito conquistado e portanto aberta a atender a sua comunidade, por mais diversas, plurais e democráticas que sejam algumas unidades escolares não estatais, dificilmente conseguem operar com a abertura de uma escola pública, embora alguns projetos deste movimento ofereçam experiências interessantes a serem observadas neste aspecto de abertura, inclusive econômica.
Na aprendizagem aberta a educação é centrada nas relações e na palavra, assim a aprendizagem permanece aberta às mudanças, a única coisa permanente na vida. A aprendizagem precisa ser pensada de forma aberta em respeito à diversidade e a riqueza da natureza humana, a diversidade de pessoas, territórios e culturas, em respeito à possibilidade de diálogo constante consigo, com o outro, com os outros e com os problemas de suas comunidades. Ao ser trabalhada de forma aberta a aprendizagem respeita a diferença e possibilita que cada currículo seja construído em acordo com a sua comunidade, mesmo que em obediência à legislação, a despeito de tantas escolas que se afirmam construtivistas, mas possuem já todas as suas propostas fechadas ao diálogo e impedida a construção coletiva. A aprendizagem aberta é fundada na inteligência coletiva e na liderança flutuante, antídoto para tirania e toda forma de controle, pois reconhece a realidade como sistêmica e intersubjetiva, portanto, imprevisível. Acompanhamos também, nos últimos meses, algumas precipitadas escolas públicas e privadas, ousando reabrir em um formato semelhante, mas a base de álcool gel e suposto distanciamento, protocolos ainda aparentemente imprudentes e irresponsáveis diante da espera pela vacinação coletiva.
Vale observar a arquitetura verde e aberta de escolas como Colégio Viver e Projeto Âncora, dentre outras iniciativas já participantes deste movimento, assim como nas raízes brasileiras indígenas e quilombolas de culturas nas quais as crianças eram já educadas naturalmente em espaços coletivos abertos e integrados a natureza, em suas aldeias. Os parques infantis desenhados por Mário de Andrade, assim como as Escolas Parque imortalizadas por Anísio Teixeira, são referências de vanguardas importantes para as escolas abertas a nascer neste século XXI, já verdes e ecológicas pela urgência de reconexão humana com a natureza, nos remetem também às culturas ecológicas e comunitárias dos shtetels aos kibutzim, ligados às minhas raízes ancestrais.
Uma gestão aberta do tempo, dos espaços e das pessoas não segmenta o conhecimento em disciplinas divididas em aulas de cinquenta minutos, mas compreende o conhecimento de maneira empírica, sistêmica, holística e complexa. Qualquer objeto de investigação nos levará inevitavelmente a navegar pelas diversas áreas do saber. Ao separarmos a História da Geografia estamos separando o tempo do espaço, ao separar a Química da Biologia estamos separando os seres vivos de seus elementos constituintes, estes recortes acadêmicos podem ser interessantes para propósitos específicos da pesquisa, mas para a educação de crianças não é a pedagogia mais adequada, não dialoga com a realidade dos estudantes, não produz sentido e significado.
Mais do que aprender os conteúdos de História, Geografia ou Matemática, agora já sempre disponíveis na internet, a escola de aprendizagem aberta permite ao estudante desenvolver a inteligência histórica, geográfica e matemática, por exemplo, para que saiba pensar historicamente, compreender o espaço geograficamente, executar cálculos matemáticos, uma escola que não separa a preparação para a vida da própria vida, pois as os estudantes justamente já estão vivos e se não castrados completamente pela escola convencional e bem orientados tornam-se capazes de auto organizar-se em grupos de estudos e pesquisa, comissões e grupos de trabalho, rodas de conversa e assembleias, projetos e tutoriais.
Uma gestão aberta das pessoas implica na abertura constante para o diálogo horizontal honesto e sem julgamento prévio, com respeito às diferenças de cargos e funções, mas antes de mais nada com respeito a cada uma das pessoas envolvidas. Penso que a gestão mais importante para construção de campos para aprendizagem aberta é a gestão da palavra. Uma pedagogia de aprendizagem aberta não pode ser centrada na filosofia do ensinar, nem no professor, ou no antigo aluno, mas sim nas relações, entre estudantes, entre estudantes e adultos (tutores, educadores) e entre os próprios adultos. Precisamos nos tornar conscientes de que transmitimos o que somos e portanto precisamos ser, mais do que dizer. Uma educação centrada nas relações nos exige comprometimento máximo com a palavra, quando a autoridade não está mais centrada no professor ou no aluno, mas na palavra, é através dela que cada um se coloca em seus papéis, fazendo valer também a escola como um espaço de voz e escuta e assim um espaço de saúde, física e mental.
Com a educação centrada nas relações e a autoridade centrada na palavra através do exercício desafiador do diálogo aprendemos a compartilhar a palavra e assim compartilhar a autoridade e o poder, sentamos em roda para que possamos nos ver, levantamos a mão quando queremos falar para não interromper o outro, escutamos aos outros e buscamos não centralizar a palavra cuidando do tempo de fala, cientes de que nosso propósito não é centralizar a autoridade e o poder, mas buscar construir um campo possível para emergir a nossa consciência e inteligência coletiva e lideranças flutuantes. Através da gestão aberta da palavra construímos confiança e assim vínculos profundos entre as pessoas envolvidas.
Quando a escola convencional sabota das crianças a possibilidade de fala, escuta e escolha, ela sabota inevitavelmente também o direito a construção da autonomia, não se trata de mimar crianças e não estabelecer limites ou contornos, mas de reconhecer o acúmulo de castrações indevidas impostas às crianças sob o rótulo do limite. Quando um estudante não tem autonomia para ir ao banheiro ou beber água, passa cerca de 15 anos em instituições sem espaços para seus anseios para os anseios de suas comunidades, sem participação no chamado currículo, ou seja, grande parte do tempo de suas próprias vidas, se tardam processos importantes de aprendizagens de escolhas, responsabilização por elas e consequente construção de autonomia individual e comunitária.
Observo três fortes tendências se fortalecerem nas escolas brasileiras nos últimos anos, uma mais progressista diretamente ligada à busca por um novo paradigma decolonial, que no paralelo acompanha a onda crescente das escolas multilíngues ainda lideradas pelas privadas bilíngues na língua inglesa, que no geral deixam muito a desejar aos sonhos de Malaguzzi. Mas vemos também a deprimente militarização proto-fascista na rede pública bolsonarista, na qual confunde-se educação com treinamento e tirania. Enxergo nesta pandemia uma janela de abertura para um novo olhar para educação e para a escola, como uma oportunidade de aprendizado para transformações necessárias.
Aqui no Brasil acompanho educadores em suas diferentes funções, da direção a solidão diária da sala de aula, oferecendo toda a sua dedicação possível para construir em suas escolas e comunidades projetos político pedagógicos mais coletivos, humanos, solidários e democráticos, capazes de transformar as realidades nas quais estão inseridos, durante a pandemia seguiram se doando, não apenas grudados nas telas em conflito com as prioridades de suas próprias famílias, dentro de seus lares, mas inclusive se expondo e se arriscando pelos estudantes.
Após este ano duro e ambivalente, que possamos renovar nossas forças para retomar o caminho da diversidade, da vida e da democracia, com impeachment, vacina para todos e reabertura das escolas, seguiremos tecendo estes caminhos e atentos às ameaças permanentes de ataque à democracia e humanidade.
Denis Plapler – Atual presidente da Associação Janusz Korczak do Brasil é Sociólogo pela PUC – SP, Mestre em Filosofia da Educação e Pesquisador pela FE – USP.