11/09/2020
Por José Pacheco
O pai do Abel era agnóstico. E, naquele bairro, o seu filho era a única criança não batizada. Chegado o tempo de ir à escola, todo mundo ficou sabendo. Não tardou que o Abel acordasse, a meio da noite, chorando, vendo “o diabo” em pesadelos. Um amiguinho lhe dissera que, como ele não era batizado, quando morresse, iria para o inferno, onde estava o dito… diabo.
Na escola da primeira infância, o Abel viu respeitado o seu peculiar estatuto. Era uma escola que acolhia a diversidade (também) religiosa, confessional. Um pai pediu transferência do seu filho para essa escola, alegando que, numa outra, a criança sofrera humilhação por ser uma “criança adventista”. Perguntei-lhe se conhecia crianças “católicas”, “socialistas” ou “flamenguistas”. E se não haveria apenas crianças… sem rótulos. Conversamos, de pai para pai, e aquele pastor evangélico entendeu as palavras de Khalil Gibran:
“Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem. Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho. Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados”.
Desde há setenta anos, trabalho com educadores de todos os credos, crente de que, em matéria religiosa, nenhuma crença ou descrença vale mais do que outra. Nada me move contra qualquer credo, mas considero ser necessário assegurar o respeito pela criança. E pela diferença! Não compete à escola ensinar uma religião, nem ensinar o ateísmo. Quando o fundamentalismo invade a escola, a abertura estreita de uma “burca mental” somente permite ver o que é permitido num horizonte encurtado pelo fanatismo.
No tempo da ditadura, Portugal era uma quase teocracia. Salazar assinara uma Concordata com a Santa Sé e determinava que os portugueses só poderiam ser católicos. Quando, já em democracia, se discutia o uso do crucifixo nas escolas, uma professora escreveu num blog:
“As pessoas que são contra o uso do crucifixo, que se mudem para outra terra”.
Quando o seu filho mudou de escola, o pai do Abel foi obrigado a requerer dispensa das aulas de “religião e moral católica”. No primeiro dia de aulas, o padre, professor dessa disciplina, apesar de ter conhecimento de que o pedido fora deferido, obrigou o Abel a entrar na sala de aula. Mandou-o rezar uma ave-maria. O Abel não sabia o que isso era. Virou alvo do deboche, de escárnio geral. A turma inteira se aliou ao padre-professor, para humilhar, fazer chorar o Abel.
O domínio do secular não deveria ficar subordinado a “verdades reveladas”. Muito menos deveria ficar nas mãos de ensinantes, que se consideravam proprietários da consciência e se assumiam como reserva moral, exercendo sobre os seus alunos sutis formas de condicionamento espiritual.
Num tempo marcado pelo fanatismo, a imposição de um ensino confessional pressupunha uma visão redutora do ser humano e de mundo e valores eram transmitidos contaminados pelo sectarismo. Numa escola brasileira, assisti a uma cena degradante: uma professora “católica” acusava de todos os males os evangélicos e uma professora “evangélica” replicava no mesmo tom.
E eu rogava a Deus, numa prece:
“Deus misericordioso, tem piedade das crianças que caem nas mãos desta gente!”