29/05/2020
Por José Pacheco
Varjão (DF), 27 de maio de 2040
Ao longo de mais de quarenta anos, me deixei enredar em diálogo de surdos:
A Escola da Ponte e a Escola Aberta estão dentro da lei?
Sim, estão dentro da lei.
Mas, não têm aula…
Pois não.
Então…
Então, o quê?
E não fazem avaliação nessas escolas?
Fazem avaliação, mas não aplicam prova. O teste é o mais falível dos instrumentos de avaliação. Nessas escolas, pratica-se aquilo que a lei de bases preconiza: uma avaliação formativa, contínua e sistemática.
E a conversa se prolongava, até ao momento em que o meu interlocutor dizia algo, que eu já ouvira centenas de vezes:
Eu gostava de trabalhar assim, mas… Mas o quê?
Eu recebia por resposta um falso pretexto, ou… o silêncio. E, há vinte anos, desisti de alimentar conversas surreais, porque se usava o imperfeito “gostava”, quando se deveria aplicar o condicional “gostaria”. Muitos professores tentavam escapar da morte pelo coronavírus, sem entender que, profissionalmente, tinham sido contagiados por um vírus bem mais letal: o da ensinagem. Na formação de professores, disseram-lhes que estavam “vivos por disciplina de cemitério”. Inconscientes, manipulados, indiferentes à voz de quem tinha sido curado, esses “mortos incompletos” eram cúmplices de um genocídio educacional. O Freud explicaria…
Naquele tempo, a degradação do sistema de ensino chegara a uma situação insustentável. Havia faculdades despedindo professores, porque já usavam um robô, para corrigir provas e dar nota aos alunos. Era evidente que essas faculdades não faziam avaliação, porque a não distinguiam da classificação. Perpetuavam-se obsoletos rituais de classificação, porque não havia nas escolas uma cultura de avaliação, que permitisse obter indicadores seguros de aprendizagem.
A lógica de mercado imperava, nesse já distante 2020. As empresas de ensinagem online prescindiam do concurso de professores, porque estes desperdiçavam imenso tempo no adestramento dos alunos em simulados e provas-modelo. Se, à semelhança dos professores, um robô papagueava matéria, mas muito mais rapidamente, por que contratar professores, que se queixavam de “não terem tempo para dar o programa”? Estavam criadas condições para que outros professores fossem despedidos. Se os conteúdos estavam disponíveis na Internet e se a inteligência artificial poderia assegurar, sem falhas, a tarefa de os transmitir, por que contratar “auleiros”?
Há quase quarenta anos, o amigo Pedro Demo criou esse neologismo. E escreveu num feliz ensaio: [auleiro é] quem não sabe pensar, quem não tem produção própria e só pode dar aula. Quem não tem proposta, precisa adotar apostila. Ainda acreditamos que a melhor forma de aprender é escutar aula. Velharia!
Um vírus nos viera dizer que já era tempo de substituir um sistema de ensino por um sistema de aprendizagem. As empresas de ensinagem poderiam prescindir de auleiros. Mas, nas escolas da aprendizagem, os professores ainda eram indispensáveis, insubstituíveis.
Quando alguém questionava o trabalho dos professores, eu fazia a defesa intransigente da sua dignidade profissional. Enquanto dirigente sindical, eu não tolerava ofensas à honra daqueles que se tinham deixado “funcionarizar” e se diziam servidores públicos, quando apenas eram serviçais de um iníquo sistema. Mas deixei de perder tempo com casos perdidos, desisti de conversar com que não escutava.