30/04/2020
Nos últimos meses, vimos a crise da Covid-19 acometer o mundo, estremecendo valores e estruturas que pareciam consolidadas há muito tempo. Não poderia ser diferente. Sobre o verbete “crise”, o dicionário online Michaelis traz a seguinte definição: “momento em que se deve decidir se um assunto ou o seguimento de uma ação deve ser levado adiante, alterado ou interrompido; momento crítico ou decisivo”.
Traduzindo em miúdos, o mundo passa por uma mudança brusca, cujas alternativas de enfrentamento ganham contornos decisivos. Pois se é verdade que este momento (como toda crise) trouxe reveses e desamparo, também é fato que ele nos convoca a repensar, a rever paradigmas sociais, a buscar novos caminhos para a construção de um outro mundo.
Neste contexto, a educação inovadora desempenha um papel fundamental ao se colocar como agente desta transformação. “É um momento muito desafiador, ainda estamos sofrendo o impacto do choque, de um trauma coletivo. Mas, ao mesmo tempo, esta situação nos pressiona a assumir efetivamente que não existe mais nenhuma possibilidade de nos mantermos enquanto humanidade da forma que está”, reflete Cláudia Passos, coordenadora de projetos da EcoHabitare. “As escolas precisam, mais do que nunca, assumir que não dá para apoiar processos que consolidem o status quo ou que se “camuflam” de transformação. É preciso fazer um processo disruptivo de verdade” continua.
Para a especialista, a atual conjuntura personifica a falência do velho modelo escolar e se relaciona com outras crises institucionais que observamos. “Hoje, fica claro que a escola conteudista, da escuta passiva dos alunos, acabou. Se a escola não entender isso agora vai continuar repetindo o padrão até a próxima crise. Porque é verdade que a escola tradicional nutriu um sistema predador, patriarcal, manipulador, que construiu essa crise que estamos vivendo.”
E se muitos já percebem que algo precisa ser feito e estão se movimentando com todas limitações que um processo desafiador, sem receita, impõe, há também os que negam o momento. “Vejo pessoas que acham que tudo voltará a ser como antes ou ainda aqueles que, por falta de suporte ou medo, não conseguem ter uma interlocução adequada para sair deste lugar de negação. Precisamos chegar perto desses educadores”, diz Cláudia.
O educador José Pacheco aponta que não é de hoje que se fala sobre a urgência de uma nova escola para um novo mundo, mas o momento intensifica essa demanda. “Tenho medo de que não aproveitemos a lição do coronavírus, de que quando essa crise acabe os alunos voltem às suas rotinas e não tenhamos entendido que a escola não é o prédio, são as pessoas”.
Mas para que a mudança seja efetiva e positiva, é preciso tomar cuidado com falsas panaceias e pseudo-inovações. Recursos tecnológicos, por exemplo, podem ser muito úteis neste período de isolamento social, mas não devem ser compreendidos ou utilizados com o intuito de reproduzir e perpetuar velhos modelos que já se mostraram ineficazes, a exemplos das aulas expositivas por vídeo.
“Vejo estas videoaulas e questiono se contribuem para a aprendizagem. Eu digo que não, porque essa aprendizagem não é significativa. O que acontece é que os professores são responsáveis e amam suas crianças e fazem de tudo para não deixá-las desamparadas e, por vezes, caem nessa armadilha. É nobre a proposta, mas é inútil e será prejudicial porque se dá a ilusão de que se ensina e se aprende algo”, critica Pacheco.
Walquiria Castelo Branco, consultora do CESAR School, concorda. Para ela, muitas escolas passaram para uma educação remota, reproduzindo as mazelas da sala de aula. “É uma versão ainda pior, porque no presencial há a ambiência, o convívio social que os alunos tanto gostam e valorizam. No remoto, vejo muitos reforçando ainda mais o aspecto instrucionista da escola”, diz.
Por outro lado, diz a especialista, nunca esteve tão claro como os princípios e valores da educação inovadora são relevantes. “Uma crise como essa mostra a necessidade de uma interpretação multidisciplinar. A importância da análise de historiadores, médicos, sociólogos, biólogos e outros para compreendê-la. Mostra também a importância de estar junto das famílias, de responder ao problemas e produzir conhecimento para o território, de sermos solidários”, aponta Walquiria, acrescentando que a atual crise escancara também aquilo que não funciona ou deu errado na educação: “as fake news, a falta de discernimento do porquê precisamo ficar em casa, de cidadania mesmo, são sintomas dessa escola que acha que a única coisa que importa é a nota no PISA.”
E qual papel assume a educação inovadora no pós-crise Covid-19? Se é função desta escola transformar contextos, superar desigualdades e garantir aprendizagem e desenvolvimento integral de todas e todos, ela precisa ser, antes de tudo, um espaço de cura, aponta Cláudia Passos. “Espero que esta nova escola seja um espaço de cura das relações, das nossas necessidades estruturais, da nossa humanidade. E para isso a gente precisa de tempo e de muito diálogo com famílias, estudantes e poder público.”
Para ela, todas as organizações educativas que inovam em seus projetos políticos pedagógicos precisam refletir e avaliar qual currículo interessa agora. “Para mim, fica claro que é o de revisitar o mundo, nossa comunidade, da solidariedade, da empatia, de assumir que não se sabe. De tecer juntos esse ‘não saber’ e criar alternativas”.
Pacheco conta já ter começado a colocar essas aspirações em prática. “Estamos reunindo um grupo de educadores que, entre maio e junho, vão partir do isolamento social para lançar bases de protótipo de comunidades de aprendizagem. Vamos trabalhar com cerca de 200 formandos para criar em torno de 50 projetos em vários lugares do Brasil e do estrangeiro, colocando o manifesto dos Românticos Conspiradores [rede colaborativa formada por pessoas que militam pela transformação da educação] em prática.”
Walquiria finaliza com o recado: é o momento de valorizar a escola física e um sistema integrado de escolas públicas. “Da mesma forma que o SUS tem se mostrado tão necessário, espero que fique claro como precisamos de escolas que trabalhem para que as pessoas tenham autonomia, conhecimento e que acolham suas crianças, jovens e educadores.”