13/09/2018

Território Amazônia e a educação inovadora

Mulher, negra e solteira. Assim era Francisca do Rosário Carvalho. Nascida na localidade de Paraná da Dona Rosa, município de Juruti, no extremo Oeste do Pará, ela se tornou professora normalista, em Santarém (PA), território compreendido como parte da região da Amazônia.

Após estudar enfermagem na USP, e serviço social na PUC-SP, voltou para sua terra natal, em 1957, para atuar na área da Educação e Assistência Social com as comunidades da região.

Foto da professora Francisca, uma das referências em educação na Amazônia

Retrato da professora Francisca, uma das referências em Educação em Santarém (PA)

A professora Francisca, como era conhecida, lutou pela garantia dos direitos de todas as pessoas que moravam na região e seguiu assim até morrer, em 2016, aos 90 anos.

“Quando iniciou seu trabalho aqui, havia uma gangue na cidade. Ela disse que iria acabar com isso e realmente conseguiu tirar todos os meninos do crime por meio de projetos sociais”, diz Lucineide Pinheiro, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), que acompanhou o trabalho da professora Francisca.

Segundo ela, a professora “representou uma das características mais importantes das pessoas que vivem na região: a grande capacidade de resiliência, de conseguir reconstruir a realidade, de saber viver em comunidade”.

Lucineide atualmente desenvolve um trabalho de acompanhamento de 69 escolas da região em diversas comunidades. “Há grandes educadores na Amazônia e que são educadores comunitários, que tem toda uma luta, de um movimento social. Há grandes mestres, professores que ensinam e semeiam a esperança”, explica.

O território

Rio Tapajós, no coração da Amazônia brasileira

Rio Tapajós em Alter do Chão, região próxima a Santarém (PA). Crédito: Thais Iervolino.

O trabalho desses educadores, estudantes, professores e demais pessoas que lutam por uma educação de qualidade resulta em metodologias e práticas que faz da educação uma educação inovadora.

Contudo, é preciso saber se tal inovação faz sentido a determinado tempo, realidade, contexto e território. Para isso, pensando em uma inovação na Amazônia, é preciso antes saber o que entendemos por território e por Amazônia.

Um dos principais conceitos sobre território foi o apresentado pelo geógrafo Milton Santos. Segundo ele, o território é o espaço apropriado e transformado pela atividade humana. “Ele tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.”

Dessa forma, para além da dimensão físico-espacial, o território inclui um conjunto abrangente de relações sociais, como as socioeconômicas e as políticas, bem como as representações sociais sobre ele. Nessa concepção, os limites territoriais são definidos pelas pessoas e pelos grupos sociais a partir de suas representações e de suas relações.

O território é o chão que pisamos (ou que deveríamos pisar) e as ações e relações​ que se dão sobre este chão. Mais do que terra e limite, o território surge como um importante elemento no processo de efetivação de políticas e ações da educação: é nele que os sujeitos vivem e constroem suas subjetividades, com base nas relações e realidades ali existentes. Sendo assim, para que políticas e ações de educação possam garantir o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, é preciso levar em conta as características que o território apresenta, das questões geográficas às sociais.

Mapa que contempla os nove Estados da Amazônia Legal

As Amazônias

Entende-se por Amazônia não somente o bioma que, em si já é diverso por possuir além de florestas, savanas etc., mas também sua característica política e administrativa, ou Amazônia Legal, que se estende pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e partes do Tocantins e Maranhão.

Essa área representa 53% da parte terrestre do Brasil (5 milhões de quilômetros quadrados) e conta com uma população de 25 milhões de habitantes, que geram quase 8% do PIB brasileiro.

Além disso, 43% (2,1 milhões de km²) do território da Amazônia fica dentro de Áreas Protegidas ou áreas habitadas por povos indígenas. Aproximadamente 21% da Amazônia é área pública federal ou estadual fora das Áreas Protegidas e das 400 áreas habitadas por povos indígenas, que hoje representam cerca de entre 170.000 e 200.000 habitantes.

Espaço e território

Ribeirinho no rio Tapajós. Amazônia brasileira.

Luís Lima com seu neto. Luís é ribeirinho de Pimental, comunidade do rio Tapajós (PA). Crédito: Thais Iervolino.

Nesse cenário, refletir sobre a Amazônia implica reconhecer a complexidade que se expressa na sua vasta territorialidade. O espaço geográfico amazônico passa por diversas alterações, sendo que as mais significativas correspondem aos contextos de investida na busca de riquezas.

“A fauna e a flora, assim como a composição química do solo, do subsolo, das águas e do ar, também se alterou e continua sendo alterada, e os estudos nestes campos mostram-nos que não há uma Amazônia ‘cristalizada’. O espaço amazônico está em construção. Da mesma forma, a composição humana amazônica é dinâmica, múltipla, e em vários aspectos, singular, e ainda pouco conhecida, especialmente se considerarmos a amplitude do território e as grandes irregularidades na presença humana”, afirma Anselmo Alencar Colares, em seu artigo História da Educação na Amazônia.

Diante de tal diversidade e dinâmica, especialistas analisam a região não apenas como uma Amazônia, mas como múltiplas Amazônias. “Aqui temos uma população de indígenas, ribeirinhos, quilombolas e nordestinos que, em determinado momento, migraram para a região, interagiram e fizeram essa mistura. Aqui, esses sujeitos representam essas Amazônias. É a partir de toda essa diversidade que essa pessoa, que nasce nesse território, passa a se constituir como sujeito”, explica Lucineide, professora da Ufopa.

E a inovação?

Aula de bateria do projeto Esperança e Vida na Amazônia

Aula de bateria desenvolvida pelo projeto Esperança e Vida na Amazônia. Crédito: divulgação.

A partir desse contexto, as metodologias e práticas inovadoras não necessariamente são as mesmas que surgem em outras regiões brasileiras.

“Olhando a partir dessa diversidade enorme em termos de pessoas, lugares e cultura, para nós de uma forma geral, é algo que traz um novo olhar, uma nova perspectiva. O que é inovação em uma escola de uma região de rio? De floresta? Em uma escola de zona urbana?”, indaga Lucineide, que continua: “O que eu faço para tornar esse lugar melhor para viver? Às vezes a gente se preocupa com algo novo e tecnológico, mas nem sempre isso é inovação”.

Ela conta que em um dado momento, o Ministério da Educação iniciou um processo de envio de materiais para escolas. Eram televisões e computadores. “Quando esses materiais chegaram na região de várzea, isso não representou qualquer mudança, já que não havia energia elétrica”, conta.

A inovação só chegou nessas escolas com o recebimento dos materiais de percussão. “Quando a música passou a fazer parte do cotidiano escolar, a educação ficou mais dinâmica, mais gostosa. Os estudantes começaram a interagir com a comunidade”, revela.

Esperança e vida na Amazônia: inovação por meio da cultura

Oficina de Leitura do projeto Esperança e Vida na Amazônia

Crianças participam de oficina de leitura, uma das atividades da iniciativa. Crédito: divulgação.

As contribuições que a professora Francisca fez para a população de Santarém não se limitaram à época em que estava viva. Seu legado repercute nas ações e projetos sociais que ela iniciou. Um deles é o “Esperança e Vida na Amazônia”.

Situado em Santarenzinho, um dos bairros mais violentos do município, o projeto foi criado pela professora em 7 de outubro de 2009, com o objetivo de prevenir o uso de drogas, a prostituição e a marginalização de crianças, jovens e adultos.

“Percebemos que todas essas problemáticas existiam porque não havia instrumentos que fizessem com que a comunidade se desenvolvesse. A professora viu na Cultura um grande eixo para se trabalhar com a comunidade. Percebemos que não conseguiríamos acabar com as mazelas, mas poderíamos dar outra perspectiva de vida para as crianças e jovens” relata Rony Lima, que atua no projeto desde sua fundação e hoje é o diretor da iniciativa.

Música, cultura e educação na Amazônia

Rony, do projeto esperança e vida na Amazônia

Rony: “Antes era só cultura e esporte. Hoje trabalhamos com educação, cultura, esporte, lazer e sustentabilidade”.

O projeto começou a desenvolver um trabalho com música, mais especificamente com oficinas de instrumentos de corda, flauta e coral de adultos, e também com a prática de esporte, que se resumia a aulas de ginástica para a terceira idade.

“No início, tínhamos 120 crianças, jovens e adultos e esse número foi aumentando. Começamos a perceber que nos dois primeiros anos do projeto, a comercialização de drogas no bairro diminuiu, a prostituição já não era mais falada e mais crianças queriam fazer parte”, explica Rony.

Após a morte da professora, o projeto constituiu uma instituição e expandiu suas atividades. “Antes era só cultura e esporte. Hoje trabalhamos com educação, cultura, esporte, lazer e sustentabilidade. Fazemos um acompanhamento pedagógico de nossas crianças e nos aproximamos das escolas. Além disso, como o bairro ainda possui floresta, temos um trabalho importante com relação à conscientização ambiental”, explica.

Atualmente o projeto atende 250 pessoas de 4 a 85 anos de idade. “Infelizmente não conseguimos atender mais do que isso porque não temos espaço e nem dinheiro. Todo o trabalho aqui é voluntário e não temos um financiamento próprio”, explica.

Crianças e adolescentes integram a banda de música do projeto Esperança e Vida na Amazônia. Crédito: divulgação.

Rony conta que um dos maiores desafios que a iniciativa enfrenta na atualidade é a depressão de crianças e jovens.

“Já tivemos alunos cujos pais nos ligavam de madrugada porque seus filhos tentavam se matar. Aqui, o atentado contra a própria vida é muito comum e é consequência da violência intrafamiliar. Vemos que a instituição é um refúgio para essas crianças e jovens e por isso hoje dispomos do trabalho de uma pedagoga, uma psicóloga e uma profissional da Assistência Social que analisam caso por caso e, se necessário, fazem articulação com o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) e o Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) do município”, diz.

Pelo seu trabalho que se traduziu na melhoria de vida de crianças e jovens, assim como em sua aprendizagem, a iniciativa foi uma das destacadas pelo MEC por desenvolver ações inovadoras na educação no Brasil e hoje faz parte do Movimento de Inovação na Educação.

EMEF Profº Waldir Garcia: vontade de transformar

Crianças durante oficina de teatro da EMEF Profº Waldir Garcia

Crianças participam de oficina de Teatro na EMEF Profº Waldir Garcia. Crédito: divulgação.

A quase 600 km de distância de Santarenzinho, em uma viagem de 30 horas de barco pelo rio Amazonas, localiza-se outra iniciativa que tem transformado a educação e a realidade de crianças e adolescentes, é a Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Waldir Garcia.

Situada no bairro de São Geraldo, em Manaus (AM), a escola estava ameaçada de fechar por falta de alunos. “Estamos às margens de um igarapé em 2015, o governo estava retirando as casas de palafitas e deslocando as famílias para bairros distantes. De uma hora para outra, de mais de 600 alunos que tínhamos, passamos a ter cerca de 100. Estávamos na eminência de fechar a escola”, explica Lúcia Cristina Cortez de Barros Santos, gestora da instituição.

Lúcia conta que, paralelamente a isso, o Coletivo Escola Família Amazonas, grupo de pais que estava preocupado com a educação dos filhos e queriam investir na educação de escola pública e fazer um trabalho compartilhado com a escola, propôs um projeto para a secretaria de Educação, que apresentou a algumas escolas, entre elas a EMEF Professor Waldir Garcia.

“Paralelamente, havíamos conversado com os pais cujos filhos já estavam em nossa escola e vimos que, mesmo morando longe, eles queriam permanecer aqui. Lutamos então por ser uma escola de tempo integral e, quando chegou essa proposta, vimos que ela ia no caminho que queríamos trilhar”, explica Lúcia.

Salas de aula com mesas redondas

As carteiras foram abolidas, dando lugar a mesas redondas. Crédito: divulgação

O início

Após conversar com professores, profissionais da escola e pais, a gestão aceitou a proposta e partiu para uma nova etapa de transformação, a pesquisa.

“Fizemos uma roda de conversa e acertamos o apoio com a secretaria, os professores e o grupo de pais que matricularam seus filhos nessa escola. A partir da aceitação da proposta, fomos estudar. Pegamos como base as metodologias do Projeto da Ponte, do Projeto Âncora, vídeos, documentários, etc.”, conta Lúcia.

Em fevereiro, com o início das aulas, os envolvidos no projeto optaram por transformar o espaço e o ambiente escolar. Foram retiradas as carteiras, e colocaram mesas redondas. O sinal foi substituído por música e as filas foram abolidas. “A gente queria incentivar o protagonismo das crianças, então não fazia sentido haver alguém que guiasse uma fila”, explica.

Após a mudança no cenário da escola, foi a vez de o currículo ser transformado. “Resolvemos criar oficinas que, inicialmente, funcionavam no contraturno. Os próprios professores da escola desenvolviam as aulas de teatro, música, língua inglesa etc”.

Lúcia - EMEF Profº Waldir Garcia

Lúcia: “Todos nós somos educadores e somos responsáveis pela educação de nossos alunos”.

Mudanças

Todas essas mudanças geraram um conflito em relação aos pais que estavam acostumados a uma escola com um modelo disciplinar. “Essa ‘bagunça organizada’ causou um certo incômodo, mas conversamos com todos.”,diz Lúcia.

Houve também um trabalho de escuta dos estudantes e dos profissionais. “A proposta era que todos participassem da construção do conhecimento. Então passamos a conversar por meio das assembleias e hoje as disciplinas e as oficinas são desenvolvidas de forma interdisciplinar. Conseguimos construir um currículo integrado e integrador”, explica.

Outro elemento importante que a escola começou a olhar foi o acolhimento. Com as mudanças sociais e econômicas que a América Latina tem vivenciado, Manaus começou a receber um grande contingente de imigrantes oriundos, principalmente, do Haiti e da Venezuela.

“Nossa escola está perto da igreja que tem uma pastoral dos imigrantes. E essa igreja, ao receber famílias estrangeiras, encaminhava as crianças e adolescentes para a escola. Temos um grande número de alunos imigrantes na escola, que começam a ser alfabetizados na língua portuguesa”, afirma e continua: “Também temos uma preocupação muito grande com a inclusão de crianças especiais cuja matrícula é negada em outras escolas públicas, embora a lei garanta que toda criança tenha direito à educação”.

Para ela, “a escola está fazendo o que todas deveriam fazer. A escola é o local da diversidade e por isso temos que trabalhar a empatia, a inclusão. Tivemos um novo processo de pesquisa, de revisão de nossas práticas para que todos aqueles que estivessem na escola pudessem contribuir com todas ações feitas, desde a merendeira até a direção. Todos nós somos educadores e somos responsáveis pela educação de nossos alunos”, diz.

Desafios da educação e da inovação na Amazônia

O Projeto Esperança e Vida na Amazônia e a EMEF Profº Waldir Garcia são dois exemplos de muitas iniciativas que buscam transformar a vida de crianças, adolescentes e jovens da Amazônia por meio da Educação. Só no mapa do Movimento de Inovação na Educação existem mais três. São elas: a Oficina Escola de Luteria da Amazônia, a Escola Indígena Baniwa e Koripako – EIBC Pamáali e a Casinha de Leitura.

Essas e outras instituições lidam dia a dia com os desafios que o mundo, o Brasil e a região amazônica apresentam para a educação. “Temos muitas demandas. E, historicamente, as políticas educacionais nunca chegam por direito”, explica Lucineide

“O próprio Brasil não sabe o que é a Amazônia. Há um olhar completamente diferente do que ela é e por isso há uma desconexão muito grande em relação às nossas demandas e às políticas educacionais”, diz. “O que é planejado em Brasília ou em São Paulo muitas vezes é inviável de ser implementado nas regiões de várzea daqui, por exemplo. Ações que visem a questão da água potável, da energia elétrica fazem muito mais sentido. Por isso, é preciso que haja um olhar para os sujeitos, a partir dos lugares, de onde estamos. Não é possível fazer educação com modelos prontos e as iniciativas e educadores locais têm muito a nos ensinar em relação a uma educação efetivamente inovadora”, conclui.


Para saber mais:

Conheça o coletivo de pais e familiares que contribuiu com a transformação da EMEF Profº Waldir Garcia

Leia a entrevista da professora Francisca, uma das referências de luta pela transformação social e garantia de direitos do oeste do Pará.

Assista ao vídeo sobre a história da educação na Amazônia

Saiba mais sobre o conceito de território em relação à educação

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