21/05/2020

A pandemia como Base Mundial Comum Curricular

Por Denis Plapler*

Fomos jogados para dentro de nossos próprios lares, para o interior de nossas próprias profundezas, descortinou-se toda e qualquer possibilidade de refúgio de nossa própria realidade, obrigados a nos enxergarmos frente a nós mesmos ou refletidos naqueles que mais amamos, ou amávamos, até as mais recentes revelações e desafios impostos pelo enclausuramento. De um dia para o outro roubaram a nossa liberdade, ou pelo menos parte dela, pois é verdade também que para sermos livres precisamos antes permanecer vivos e, no atual contexto, a radicalização de um comportamento social comprometido com o isolamento social poderia salvar milhares de vidas. Mas afinal, o que aprenderemos com esta experiência?

Conforme previsto em nosso Plano Nacional de Educação este seria um ano importante para implementação da polêmica Base Nacional Comum Curricular, a já famosa BNCC, como uma forma de buscar garantir alinhamentos mínimos necessários para os currículos de todas as escolas brasileiras. Entretanto, surpreendidos por este novo e imprevisível contexto internacional temos talvez uma nova oportunidade e, ao mesmo tempo, obrigação, de refletir sobre o que de fato precisamos aprender coletivamente diante do drama pelo qual passa o planeta. Neste contexto, mais do que um currículo nacional comum, nos deparamos agora com um processo de aprendizagem comum a todos os países, pois, se retornarmos deste cenário de pandemia no mesmo rumo no qual entramos, tudo indica que prosseguiremos rumo a um suicídio coletivo.

Da escolástica medieval subordinada ao bispado, às escolas modernas filhas do iluminismo, a vida comunitária foi gradativamente destruída para a implementação de um violento modelo urbano vinculado a um conceito de civilização eurocêntrico. As cidades modernas sacrificaram nossos rios, nossa natureza foi concretada.

Gradualmente, ao longo dos últimos séculos, transitamos da vida coletiva e comunitária para a vida individualista e solitária. O confinamento produzido pelas cidades modernas, fruto do medo imposto pela violência produzida pela desigualdade, é muito anterior a pandemia do novo coronavírus. Em nosso território, povos negros foram escravizados e comunidades indígenas foram dizimadas, e seguem sendo. No processo de “desenvolvimento” das cidades, a crescente desigualdade e violência social fez com que as casas coloniais, de porta para a rua, fossem gradativamente substituídas por edifícios gradeados com suas câmeras de vigiar. Não se trata de ignorar todos os desafios e sofrimentos inerentes à vida no campo, mas da necessidade de problematizar o modo de vida nas cidades para que possamos repensar a educação que queremos pautada no mundo que desejamos.

Um sistema econômico centrado nos recursos e não no capital nos possibilitaria certamente viver em um mundo da fartura e não da produção de desigualdade, miséria e violência. Cerca de 5,2 milhões de pessoas ainda passam fome no Brasil (ONU, 2019), ainda que aproximadamente 41,6 toneladas de alimentos sejam jogadas fora diariamente no país (FGV/MindMiners, 2019). A questão da moradia não é diferente, 11 milhões de pessoas vivem em favelas ou em moradias precárias no Brasil e 6,9 milhões de pessoas não tem onde morar (IBGE, 2019), ainda que 6,05 milhões imóveis permaneçam desocupados há décadas (BBC, 2018). A pandemia apenas denuncia ainda mais a já evidente vulnerabilidade daqueles materialmente já excluídos do sistema.

Mas como reagimos aos atuais desafios impostos pelo contexto de pandemia? Na rede privada, grande parte das escolas, temendo quebrar ao perder as suas mensalidades diante do atual cenário de recessão econômica, sem tempo para a reflexão necessária, puseram-se rapidamente a seguir trabalhando pela internet. Professores exauridos, desconectados de seus próprios lares, com intuito de ajudar os seus estudantes e temendo perder os seus próprios empregos, empenham-se em aprender rapidamente o domínio das mais modernas ferramentas digitais, para assim seguir ensinando virtualmente, em muitos casos sendo obrigados a trabalhar ainda mais horas por dia, mesmo que inclusive com  seus salários reduzidos pelas circunstâncias, dentro de um país no qual os direitos trabalhistas são cada vez mais violados.

Na rede pública de ensino, o cenário e os desafios são bem diferentes.  Preocupadas em de alguma forma garantir a aprendizagem dos seus estudantes e ao mesmo tempo preservar as suas vidas, professoras e professores seguem trabalhando a distância, enquanto os servidores públicos das secretarias seguem na ativa e expostos ao risco de contágio. Acusada de não acompanhar a suposta eficiência da rede privada por não dispor das modernas plataformas digitais e cientes do cenário de exclusão social e digital do país, com 6,6 milhões dos seus estudantes sem acesso à internet (GLOBO, 2020), secretarias de educação, gestores e professores se desdobram para fazer o possível para seguir ensinando os seus alunos. Além da imprescindível distribuição da merenda escolar para milhões de crianças que dependem desta alimentação, as escolas também seguem distribuindo livros e atividades para estas famílias sem acesso à internet.

A distância, professores gravam vídeos, elaboram e corrigem atividades e alcançam seus estudantes principalmente através de plataformas como Facebook e Whatsapp, já mais popularizadas no país e com menor exigência no que se refere à qualidade do sinal de conexão.

Entretanto, neste momento de pânico e medo, que nos exige tamanho cuidado e recolhimento, encontro pouco questionamento referente à opção pelo ensino digital a distância que obriga jovens e adultos a, neste momento, permanecerem por ainda mais horas conectados frente às telas de seus computadores. Seria de fato esta a opção mais adequada quando pensamos em educação? A própria web já não conta com conteúdos suficientes para que os docentes precisem produzir novos materiais sobre os mais diversos assuntos? E os livros, foram esquecidos?

A concepção de que os estudantes precisam necessariamente estar conectados para aprender, vinculada à ideia de que as mães, pais e responsáveis não são capazes de ensinar de forma competente como os seus professores, reforça um paradigma colonizatório que perdura por séculos e segue impondo uma mentalidade ocidental e eurocêntrica. Vale lembrar que, no Brasil, pessoas não alfabetizadas não eram consideradas cidadãs com igualdade de direitos políticos até 1985, o que nos revela a força da imposição de uma cultura letrada, hierárquica e ocidental sobre as culturas orais e circulares já tradicionais nos territórios dos povos indígenas, originários das américas.

Desqualificar os saberes das famílias e as aprendizagens possíveis nos lares reforça apenas a concepção de que estas pessoas não possuem conhecimento para transmitir aos seus filhos por serem ignorantes e incapazes. Esta mentalidade escolarizada foi convencionalmente reproduzida desde que inserida na idade moderna a partir da revolução industrial e imposta como modelo por violentos processos colonizatórios dos países europeus sobre a África e a América, a partir de uma concepção de educação fundada em uma filosofia de conversão do outro. Aqui no Brasil, as cartas jesuítas nos servem como documentos históricos reveladores da violência sofrida pelos povos negros e indígenas durante este processo, no qual era comum infringir até mesmo nas crianças o uso de castigos físicos, torturas, privação de liberdade e separação de familiares.

Convidamos os meninos a ler e escrever e conjuntamente lhes ensinamos a doutrina christã e lhes pregamos para que com a mesma arte com que o inimigo da natureza venceu o homem dizendo: Eritis sicut Dii scientes bonun et malum com arte egual seja elle vencido, porque muito se admiram de como sabemos ler e escrever e têm grande inveja e vontade de aprender e desejam ser christãos como nós outros. (Nóbrega, 1988ª, p.21).

É inegável que em um país como o nosso, incapaz de oferecer acesso à universidade pública, gratuita e de qualidade para todos, faz do chamado ensino superior um funil de classes que representa a esperança pela possibilidade de novos futuros para gerações de famílias excluídas deste processo. Entretanto, são justamente estas culturas pautadas na oralidade que, em suas tradições, carregam uma relação de proximidade e conhecimento profundo da natureza. Não seria esta uma oportunidade de buscar resgatar estes saberes historicamente sequestrados, inclusive como forma de pensar novas possibilidades de futuros breves mais saudáveis para a vida humana no planeta? Se cientistas e ativistas já berravam desesperados buscando alertar a sociedade para o perigo do rumo que estamos tomando, na direção da completa destruição ambiental e planetária, agora a fragilidade da existência humana foi completamente exposta, pelo que se sabe, por um vírus produzido e transmitido após uma pessoa ultrapassar os limites da natureza e da vaidade humana, ao se alimentar de um animal selvagem. Me pergunto como devem estar se sentindo neste momento os veganos, vegetarianos e companhia.

Lições e reflexões da pandemia

A falta de visão sobre as aprendizagens provocadas pela pandemia reflete talvez a pouca reflexão e aprendizagem de grande parte dos adultos que seguem suas rotinas frenéticas, agora tendo que dar conta dos filhos, do trabalho e das tarefas domésticas simultaneamente, impossibilitados de enxergar a oportunidade, mesmo que triste, de fortalecimento de laços familiares de convivência e amorosidade, de aprendizagens diversas possíveis em suas residências, de tarefas domésticas como limpeza, culinária, de cuidado com as plantas, de leitura, das artes, do brincar, tarefas que parecem estar sendo desprezadas, sempre em nome do uso das novas tecnologias, reféns da mentalidade produtivista.

É isto que pretendemos agora como projeto de educação? Disseminar por completo a cultura das telas digitais de modo irrestrito da educação infantil ao ensino médio? Tenho encontrado pouca ponderação a respeito.

O que será que estamos transmitindo às crianças neste momento? O que elas estão aprendendo dentro de seus lares ao serem negligenciadas pelas suas próprias famílias sempre ocupadas com suas demandas simultâneas e impossibilitadas de estarem realmente presentes para seus filhos, ainda que diante da possibilidade de morte eminente? Mas como falar da violência inerente à falta de relação de vínculo afetivo e convivência proporcionada pelas exaustivas horas das famílias diante das telas, frente ao sabido crescimento da violência doméstica física e sexual, principalmente contra mulheres, idosos e crianças, neste contexto de isolamento social e confinamento, em um país que recebe 50 denúncias diárias de crimes sexuais contra menores? Como deixar claro às crianças quando estamos trabalhando ou disponíveis, se nós mesmos já não somos capazes de fazer esta distinção, absorvidos pelas mensagens de Whatsapp que não respeitam dia e hora?

Nos últimos três meses, tive a oportunidade de realizar uma assessoria pedagógica para doze escolas do município de Juquitiba, no interior de São Paulo. Em conjunto com a sua Secretaria de Educação estabelecemos reuniões quinzenais com as escolas divididas em quatro grupos, representados por suas diretoras e coordenadoras pedagógicas. No intervalo destes encontros, me reunia também periodicamente com toda a equipe técnica da secretaria, que não apenas acompanhava todos os encontros de assessoria, como também planejava e avaliava o trabalho. A verdade é que fiquei muito bem impressionado e, por vezes, inclusive, emocionado ao acompanhar o trabalho realizado pelos profissionais da educação, se desdobrando para superar os desafios impostos pelo momento, em nome do compromisso com seus estudantes e a educação pública, um exemplo inclusive para escolas privadas que optaram por exaurir os seus estudantes diante das telas, de forma inadequada. Diante disto me questiono a quem interessa, novamente, agora no cenário de pandemia, publicizar a escola pública como exemplo de atraso e fracasso. Fracassadas estão as escolas, públicas ou privadas, que se pretendem educativas, mas diante de uma pandemia mundial estressam ainda mais suas crianças e adolescentes. Vale destacar principalmente  a parceria que vem ocorrendo entre as famílias e as escolas, sempre tão almejada e agora, em muitos casos, fortalecida e mais próxima, mesmo que distantes, obrigadas a dialogar quase que diariamente para atender os interesses de seus filhos e alunos.

Diante de tudo isso, a escola seguirá funcionando como instrumento de colonização ou passaremos a repensar a nossa relação com o mundo e o meio ambiente? Um currículo que busque salvar o planeta e reconstruir a vida humana na Terra precisa ser capaz de transformar o encontro destas distintas culturas em um reencontro capaz de produzir vida, paz, alegria, arte e amor, no lugar de escravidão, tortura e morte, caso contrário seguiremos rumo ao suicídio coletivo, agora transmitido de dentro de nossos próprios lares.

Os professores já tão acostumados à função de vigilância e punição contínua passarão a controlar as crianças e adolescentes pelas telas dos seus microcomputadores, agora dentro de suas casas, exigindo que fiquem por horas sentados comportados frente a uma máquina, ou as escolas vão se abrir para as denúncias feitas por esta pandemia? Ao retornar não serão poucos os estudantes, professoras e professores que terão perdido parentes e amigos. Como acolher estas pessoas? As escolas precisam se preparar para trabalhar este período de luto e evitar assim um desgaste emocional ainda maior destas pessoas.

Neste momento, a realidade do nosso país é de crescimento diário do contágio do COVID-19. O coronavírus vem se alastrando por todo território nacional e o descaso não é apenas um comportamento de um presidente fascista que precisará um dia responder pelos crimes cometidos contra humanidade, mas também de muitas pessoas que nos assustam, pois parece que só se darão conta da periculosidade do atual contexto quando perderem a própria vida ou um ente querido. Mas que valor tem a vida em um sistema surdo que caminha rumo à autodestruição?

A falta de colaboração e solidariedade permite que o vírus permaneça por mais tempo contaminando e matando pessoas em um cenário que se aproxima hoje de 19 mil óbitos, no meio do mês de maio. Precisamos ficar em casa, o momento nos exige recolhimento e isolamento, é a única maneira de amenizarmos o nosso luto até que a ciência nos revele um tratamento seguro para a cura.

Ainda assim, o que vemos por aqui é que a vida segue muito mais o fluxo das relações do que qualquer tentativa de imposição por parte de governos ou do Estado. Naturalmente diante dos desafios e demandas as pessoas vão se reinventando e se reorganizando para sobreviver, nem sempre podendo colaborar, nem sempre por falta de consciência, mas muitas vezes de fato por sobrevivência e falta de autorização do patrão.

Enquanto uma multidão solitária sobrevive em seus lares, muitas famílias se reencontraram com amor e diante do inesperado também estão podendo se permitir enxergar a beleza deste momento, de estarem passando por isto juntos, sentimentos tão conflitantes e ambíguos, como o medo da morte, ou da perda de um ente querido e a felicidade de poder conviver com os seus familiares próximos, de podermos estar tão próximos de algumas pessoas que tanto amamos e privados de outras.

Tendo a acreditar que, diante do atual contexto político, um cenário pós-pandemia exigirá daqueles que acreditam na escola, não como instrumento de colonização, mas como um lugar de encontro, de convivência, de diversidade, da ampliação de repertório, da produção de experiências, de ciência, artes, esportes, cultura e conhecimento, que lutem para que ela não seja extinta, pois já não são poucos aqueles dispostos a aproveitar do momento para transformar educação em mercadoria, lucrar com isto e diminuir a importância das políticas públicas necessárias para o atendimento da população.

Não estou aqui me opondo radicalmente ao contato das crianças e adolescentes com as novas tecnologias, nada disso, afinal de contas, principalmente neste momento, se os adultos podem manter suas lives e bate-papos, as crianças também têm o direito de manter minimamente os seus vínculos e reencontrar os seus amigos, mesmo que virtualmente. Considero, inclusive, fundamental para quem pode, pois o fim deste cenário nos é ainda imprevisível.

Vejo inclusive com bons olhos a horizontalização e hiper-personalização da comunicação audiovisual causada pela pandemia atrelada a estas novas tecnologias de gravação e transmissão de vídeo. Desta imensidão de novas vozes emergentes tendo a acreditar que nem todas conseguirão ter fôlego para se manter em um cenário futuro, mas acredito que muita gente que jamais havia sido escutada poderá agora oferecer conteúdos a partir de novas perspectivas com estas ferramentas que, em certo nível, democratizaram a possibilidade de exposição da diversidade de pensamentos. Quem sabe assim, tudo aquilo que já estava morto e não nos faz mais sentido, poderá agora ser enterrado juntamente com este governo corrupto, incompetente e genocida.

*Denis Plapler é sociólogo pela PUC-SP, pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pelo Departamento de Educação, Psicologia e Linguagem, autor da pesquisa Da Palmatória a Ritalina, a invenção do TDAH, que será publicada em breve.

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