07/05/2021

Supervisora de ensino conta como foi experiência de transformação em escolas públicas em Águas de Lindóia

Tudo começou em 2014 com um grupo de professores de Águas de Lindóia (SP), insatisfeitos com o sistema tradicional de ensino baseado na tríade aula-prova-nota. E ganhou força com o intermédio da Secretaria de Educação para mudar a realidade de três escolas municipais da cidade e dar origem ao Movimento Asas.

A história completa está no livro Movimento Asas: Um Plano de Voo para a Educação Integral”, que relata a experiência de implantação da pedagogia inovadora – integral, democrática e solidária – nestas escolas públicas, detalhando não só os avanços como também as dificuldades e frustrações do processo.

Autora do livro ao lado de Marcelo Bonfim e supervisora de ensino da rede de Águas de Lindóia desde 2007, Luciane Malachias conversou com o Movimento de Inovação na Educação sobre este processo “de vai e volta, de fazer e refazer” do ponto de vista da gestão pública. Confira: 

Movimento de Inovação na Educação: Qual foi o principal incômodo ou acontecimento que despertou em vocês a vontade de construir uma nova educação nessas escolas? 

Luciane Malachias: Em uma das unidades onde eu fazia o trabalho de supervisão, que estava inserida em um bairro mais vulnerável, percebemos que havia uma discussão, uma busca por isso. Ali, havia poucas alternativas de lazer e envolvimento da família com o que acontecia na escola. Outro ponto que nos chamava a atenção era que o sistema tradicional que operava – baseado em aulas, atividades e provas – não trazia retorno. Uma porcentagem significativa atingia a nota 5 ou 6 e bem poucos ultrapassavam isso. 

Então, em 2014, a rede propôs aos professores que se unissem e fizessem um estudo daquilo que os incomodava para, no final do ano, apresentarem artigos científicos. Outro fator que contribuiu foi a visita do educador José Pacheco, que veio fazer uma palestra à convite dos empresários da região. Neste momento, ele explicou o trabalho que fazia no Projeto Âncora, em Cotia (SP), e se colocou à disposição para nos assessorar. Águas de Lindóia aderiu ao convite e três educadores passaram 1 semana imersos no Projeto Âncora para ver de perto como acontecia essa educação transformadora. Assim, em 2015, começamos a desenvolver o nosso projeto. 

MIE: Por comporem a rede pública de ensino, quais foram as particularidades neste processo?

Luciane: Da parte burocrática, como o município tinha a limitação que não permitia contratar pessoas, assim que começamos a levantar tudo que precisávamos, percebemos que precisávamos criar uma entidade jurídica, um CNPJ, para contratar educadores para nos auxiliar neste processo. Então abrimos uma Associação e fomos atrás de organizações e empresas da cidade que pudessem patrocinar a vinda de oficineiros, tutores e outros profissionais que precisariam estar dentro das escolas. 

Do aspecto pedagógico, o primeiro passo foi fazer a revisão da matriz curricular, destacando aquilo que era essencial, e em seguida, a revisão do conceito de avaliação, olhando para outras formas que o estudante tinha de mostrar aquilo que ele sabia ou de participar da aprendizagem.

MIE: A partir desta revisão, como passou a se estruturar esta nova pedagogia?

Luciane: No início, a ideia era que o aluno definisse seu interesse e a partir disso faríamos os agrupamentos por curiosidades comuns. Mas a verdade é que isso não funcionou porque eles tinham dificuldade de nomear aquilo que desejavam aprender. Então fomos para uma abordagem diferente: reunimos os alunos e fomos destacando os temas que eles tinham mais interesse em trabalhar. Então dividimos estes temas por bimestres, colocando em um quadro como ele poderia ser abordado nos diferentes componentes curriculares, de forma interdisciplinar, dando origem a um roteiro de aprendizagem e aos agrupamentos. Por exemplo, no primeiro bimestre o tema era Brasil, então os estudantes pesquisavam questões como porque haviam pessoas com culturas diferentes no bairro deles, etc. Isso exigiu muita conversa entre os professores para que Geografia não repetisse a abordagem de Ciências, por exemplo. Além disso, tinham as oficinas no contra-turno, onde eram trabalhadas as dificuldades que os alunos iam demonstrando. 

A avaliação passou a ser feita não só pelo professor especialista, mas também pelo tutor, pelo retorno que o estudante dava aos professores de todas as disciplinas e pelo projeto final. E tinham vários critérios: além do conhecimento, era avaliado como o aluno conviveu com os colegas, a oralidade, a postura de pesquisador, a troca, o impacto do projeto na comunidade. Então era um processo bem individualizado, que potencializava o que o aluno tinha de bom e, no próximo projeto, se exigia mais das partes que ele apresentou dificuldade de forma que ele se sentisse cada vez mais à vontade com aquela habilidade. 

águas de lindóia

MIE: E como os educadores recepcionaram estas mudanças? 

Luciane: Como os educadores estavam muito incomodados com os resultados, eles tinham muita sede de inovar. Mas da teoria para a prática é outra coisa. Sair daquilo que nos é conhecido e seguro não é fácil. Transgredir sem saber aonde vai dar foi muito ameaçador. Uma particularidade da gestão pública é que os professores estão alocados naquela escola pela secretaria, não porque escolheram, então temos que fazê-los entender a importância e nos adaptar também. Então trouxemos, por exemplo, Antônio Lovato, diretor do filme “Quando sinto que já sei”, para debater com eles. E foi o tempo todo esse movimento de ir vendo e revendo as práticas educativas em conjunto. 

MIE: E os alunos? Como eles se sentiram em relação à nova pedagogia?

Luciane: Com os alunos também foi assim: teve aqueles que se adaptaram bem e outros nem tanto. Com o Fundamental 1 foi mais fácil, pois eles ainda tinham uma memória da Educação Infantil que traz esse trabalho predominantemente coletivo. Já com os alunos do Fundamental 2, a dificuldade foi que eles estavam mais acostumados a fazer o trabalho tradicional, dentro da sala e tendo aula. Tanto que, no início, eles não conseguiam nomear o que queriam aprender nos projetos, tinham dificuldade de trabalhar em grupo, com vários ambientes de aprendizagem. Tivemos, inclusive, que fazer uma pesquisa para saber quem desejava voltar para o modelo tradicional e quem desejava continuar no modelo diferenciado e neste momento quase demos um passo para trás. Em 2016, passamos a trabalhar com os dois sistemas e fomos, gradativamente, conquistando mais alunos para o modelo inovador. 

MIE: Seu relato deixa bastante claro que a transformação educativa não é um caminho linear, mas que traz avanços na mesma medida em que exige recuos e adequações de rota. Que aprendizados ficam dessa experiência e como ela está hoje?

Luciane: Ao mesmo tempo que a gente percebe que podia ter feito de forma diferente muito antes, a gente se assusta ao pular no escuro, de não saber como será. Alguns professores chegavam a dizer “será que ao fazermos isso não estamos brincando com a vida deles?”. Então foi processo de vai e volta, de fazer e refazer e, no fim, dá certo se tivermos paciência e aprendermos com as frustrações.

Hoje, o Movimento Asas se constitui como um coletivo e ainda atua com uma unidade escolar, que tem Educação Infantil e Ensino Fundamental 1 em tempo integral. Mas não mais com a parte pedagógica: o trabalho acontece por meio de oficinas [teatro, audiovisual, robótica, circo, etc.], de apoio ao trabalho dos professores, com a oferta de materiais diferenciados e com a comunidade [atendimento fonoaudiológico, psicoemocional, acolhimento com Assistente Social]

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